Livro: “Vida: O Filme”(2000)
Colaborador do The New York Times, Neal Gabler, alerta em livro para a perda do contato com a realidade
Por Luiz Joaquim | 21.04.2019 (domingo)
– publicado originalmente no Jornal do Commercio, Recife – 12 de Março de 2000 – domingo
Entretenimento é tudo. Realidade é nada. A vida é uma performance. Cultuar celebridades e manipular a vida para tornar-se parte do inesgotável espetáculo promulgado pela mídia é a única ideologia do final do século. Fazer da vida uma eterna fantasia a favor da constante diversão é a ordem de comando da cultura atual. Saciar a fome fugaz pelo prazer é o único farol que ilumina a vida. Estas são algumas das colocações expostas por Neal Gabler, respeitado pesquisador americano, em Vida: O Filme. Como o Entretenimento Conquistou a Realidade (Companhia das Letras, R$ 28,50).
A intenção de Gabler é deixar claro os danos que o culto a ficção pode fazer, transformando a todos em autor e platéia da própria vida. Um vida que hoje é conduzida como a um espetáculo sem fim que precisa estar “em cartaz” e fazendo sucesso constantemente. A questão é que essa produção tende a sugar mais e mais de seu produtor. O livro não é apenas um desmembramento do clichê ‘a vida imita a arte’; se bem que, ressalta Gabler, “há um fundo de verdade nisso”. Nem é dizer que a arte inventou seus métodos artísticos e inverteu o processo – a arte imita a vida, “ainda que isso também seja verdade”, afirma o autor.
A questão é outra. O que verdadeiramente caracteriza esse processo é o fato de o Homo sapiens estar transformando-se no homo ocaenicus – o homem-artista. Não é de hoje que Gabler, colaborador do New York Times e do Los Angeles Times em seus suplementos de cultura, se interessa pelas celebridades como encarnações modernas no mito. Ele, que já demonstrou que Hollywood foi uma invenção dos judeus, no livro Empire of Their Own: How the Jews Invented Hollywood, agora mostra como a indústria do entretenimento se instalou na América.
Gabler vai às origens e lembra a influência do protestantismo evangélico na formação do caráter americano, com seus cultos baseados na teatralidade. Lembra episódios passados que ajudem a provar sua tese. Sua pesquisa vai até o começo do século 19, lembrando a eleição à presidência dos Estados Unidos, disputada por John Quincy Adams e Andrew Jackson.
O primeiro pertencia à nata de Massachussets e sabia escrever. O segundo, um analfabeto que sabia combater, foi um herói do Tennessee e vencerá a batalha de New Orleans, na guerra de 1812. A América em peso votou em Jackson e o autor do livro situa o episódio como importante por antecipar uma tendência. O povo podia identificar-se com Jackson, até porque era considerado um herói salvador da pátria; mais difícil era identificar-se com um intelectual de formação aristocrática.
Trinta anos depois, veio a disputa entre dois atores: William Charles Macready e Edwin Forrest. Dois intérpretes shakespearianos. Macready seguia a tradição clássica inglesa, Forrest tratava de americanizá-la para tornar Shakespeare inteligível para o espectador médio (naquela época, analfabeto). Parece absurdo mas, guerrilhas campais, literalmente falando, aconteciam na Nova York do século passado por causa desses dois atores.
DESEJO – Gabler diz que os Estados Unidos não criaram apenas uma democracia cultural e política, criaram também uma democracia do desejo, que transformou o país inteiro em consumidor de bens. Gabler observa que houve uma revolução gráfica na virada do século quando a imprensa, sob o impacto do desenvolvimento da fotografia, se tornou cada vez mais ilustrada. Isso coincidiu com o advento do cinema. Instalou-se o culto da imagem, que produziu astros e estrelas capazes de hipnotizar o público.
E isso era apenas o início. Com a transformação da notícia em espetáculo nos últimos anos, quase tudo foi forçado a se transformar em entretenimento para chamar a atenção da mídia. Um leilão com os instrumentos de tortura usados por um serial killer atraiu tanta atenção e rendeu quase tanto quanto o de objetos que foram de Jacqueline Kennedy. Vida: O Filme enumera uma longa lista de eventos para provar o quanto a sociedade atual é perversa e invasiva.
Há 40 anos, a palavra celebridade não era muito usada. As pessoas que apareciam em capas de jornais e revistas eram bem-sucedidas, ou famosas. A celebridade veio preencher o vazio do mito na sociedade contemporânea. O estudioso Joseph Campbell explica que sempre foi função primordial da mitologia e dos rituais fornecer os símbolos que levam o espírito humano adiante, em oposição àquelas outras constantes fantasias humanas. Embora o conceito seja desenvolvido a partir do mito clássico, pode aplicar-se à celebridade moderna.
ESTRELAS – Hoje em dia, para ser uma celebridade, a pessoa não precisa mais possuir um valor em si. Madonna sempre admitiu que não é a melhor cantora, dançarina ou atriz e, mesmo assim, virou o mito que é, construindo uma personagem para ela mesma e sabendo como manipulá-la na mídia e aos olhos do público. Nos anos 1950, Zsa Zsa Gabor, de quem poucos lembram hoje, também não sabia cantar, dançar nem representar e virou uma celebridade da época.
Isso não acontecia só com as personalidades do show business. Nunca se lavou tanta roupa suja em público. Existem revistas (People, nos Estados Unidos; Hola, na Espanha e Caras, no Brasil) e programas de televisão especializados em mostrar pessoas anônimas ou celebridades, não importa, dispostas a revelar um segredo, de preferência absolutamente fútil. “Os anônimos ficam famosos e ganham seus minutos de celebridade, os que já são famosos viram mitos, como se fosse uma grande coisa”, afirma Gabler.
A necessidade de espetáculo é tão grande que a Guerra do Golfo virou na TV uma fantasia hollywoodiana carregada de efeitos. A fome por escândalo é tão intensa que, Gabler lembra que uma das juradas do caso O.J. Simpson virou musa e até posou nua para a Playboy. A aplicação deliberada de técnicas teatrais em política, religião, educação, literatura, comercio, guerra, crime, em tudo, enfim, converteu-os todos em ramos da indústria do entretenimento, na qual o objetivo supremo é ganhar e satisfazer uma audiência.
Unindo o prazer do levantamento de dados ao atrativo mundano da fofoca, e o gosto acadêmico a um minucioso trabalho de pesquisa, Gabler deixa claro, logo no início do livro, que sua obra não apresenta heróis, soluções ou fúria vingativa sobre a mídia. “Trata-se mais de um diagnóstico do que uma receita; de uma investigação, mais de que um tratado”.
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