Democracia em Vertigem
O Senhor da História é um aliado do documentário político de Petra Costa
Por Luiz Joaquim | 23.06.2019 (domingo)
Dois méritos valiosos em Democracia em vertigem (Bra., 2019), disponível na plataforma streaming da Netflix desde quarta-feira (19), são facilmente reconhecíveis. Um é integrante do filme, outro é externo a ele. Do primeiro, podemos apontar a sua fluidez narrativa a respeito de uma intricada e triste história de seu País de origem. No segundo mérito, encontramos o tempo (não a duração do filme. O Tempo em si) como seu aliado.
Como consequência desses dois méritos, três aspectos ficam salientes: pela fluidez, este novo documentário de Petra Costa (de Elena) pode ser visto com bons olhos pelo brasileiro no qual ainda reside um tantinho de razão, mas que, em junho de 2019, ainda não se deu conta da gravidade político-social em que nos encontramos (e piorando a cada novo dia).
Ainda pela fluidez do filme – e mesmo, numa certa medida, pela sua sedução visual -, há aqui a capacidade de pôr para o espectador estrangeiro um contexto compreensível – dentro de 113 minutos de duração – sobre uma rede de intrigas urdida nos bastidores de tão valiosas instituições – o poder legislativo, judiciário e executivo – para qualquer democracia.
No que diz respeito ao inexorável, ao incorruptível, àquele que é o Senhor da História, o Tempo, Democracia em vertigem tem ao seu lado um elemento que o complementa na sua validade. São a série de reportagens deflagradas pelo site The Intercept Brasil (TIB), que começou a incendiar o Brasil dez dias antes do filme de Petra estrear. Nelas, o site de jornalismo investigativo expõe trocas de mensagens privadas entre o ex-juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dellagnol, revelando a inclinação política de ambos a respeito das decisões do primeiro sobre o julgamento que liderava contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
E no que isso melhora o filme? Ver Democracia em vertigem hoje é diferente de vê-lo em 8 de junho, antes do TIB entrar em cena. Ao vermos a estrutura narrativa que Petra monta em seu filme para mostra a patética performance de Dellagnol com seu powerpoint infantil e a empáfia com a qual Moro conduzia o julgamento de Lula, e ao somarmos tudo isso com as informações que temos hoje, apresentando a relação criminosa entre ambos no específico caso, esta novela, que tem a democracia como vítima, só cresce em sua perspectiva dramática. Ou melhor, operística.
Por falar em dramático, talvez seja neste tipo de representação que Petra peque dentro do seu (ainda assim) valioso estudo político-cinematográfico. Desde Elena, a realizadora conduz aquilo que quer revelar incluindo a si mesma num nível de personificação que mais distrai do que ajuda – atenção ao estilo açúcar do texto que abre e fecha este filme, por exemplo. Em Democracia… há até uma razão particular e pertinente para incluir-se no contexto do enredo. Petra, corajosamente, nos conta de sua filiação a uma das maiores construtoras do País, a Andrade Gutierrez. E coloca sua mãe (Marília Andrade) como um dos fios que amarra a narrativa de seu filme.
Marília e o pai de Petra, ao contrário dos avôs conservadores de Minas Gerais, eram militantes da Esquerda. Tanto que deram a filha o nome que tem em homenagem ao guerrilheiro Pedro Pomar, assassinado pela ditadura.
Mas isso que também pode ser visto como mérito, também pode soar com um mea culpa. Algo que também pode ser ouvido pela própria voz em off da diretora ao dizer que “por surdez ou cegueira” só foi a partir das manifestações populares condenatórias ao ex-presidente Lula e pró-Moro que decidiu registrar as insanidades que se passava na sua frente.
Uma vez decidida, Petra, pela própria origem privilegiada, conseguiu acesso a locais e imagens realmente valiosos a qualquer documentário que quisesse retratar essa história. Entre elas, um bate papo descontraído entre a mãe Marília e Dilma; o momento em que Dilma e Lula acompanham pela TV a bizarra votação na Câmara dos Deputados pelo impeachment (Golpe!); uma conversa particular entre Dilma e seu advogado, José Eduardo Cardozo; Lula arrumando as malas para se entregar à polícia federal e até uma perspectiva de dentro do carro em que o ex-presidente sairia do Sindicato dos Metalúrgicos no histórico 7 de abril de 2018.
Tendo o Tempo como seu aliado, revisões de Democracia em vertigem podem melhorá-lo ainda mais no futuro. Mas talvez algo não se resolva mesmo com a ajuda do distanciamento temporal. A narração e o texto de Petra, em tom dramático e de derrotado, parece querer empenhar mais tristeza do que a realidade por si só já estabeleceu muito claramente neste inacreditável Brasil dos últimos seis anos.
Ao considerarmos isso, e como observação de opções cinematográficas, vale assistir Democracia em vertigem ao lado de O processo, de Maria Augusta Ramos. Mas só se o espectador tiver estômago de encarar tanta tristeza nesses dois espelhos que refletem o constrangimento em que se tornou um país chamado Brasil.
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