Easy Virtue (1928), de Alfred Hitchcock
Provável que você não tenha visto este injustiçado Hitchcock. Marcelo Lyra explica o quanto devemos a ele
Por Marcelo Lyra | 12.09.2019 (quinta-feira)
Este quinto filme de Alfred Hitchcock (1889-1990) é talvez o mais injustiçado de sua obra, em parte por integrar o pouco estudado período mudo, em parte por ter sido tratado a pontapés no passado por alguns badalados críticos franceses. Noel Simsolo, por exemplo, em seu livro sobre o diretor, considera-o um filme menor e recomenda que seja rejeitado. O biógrafo Donald Spoto o trata com desprezo e dedica apenas duas páginas de seu livro Dark side of genious e praticamente o mesmo em The art of Alfred Hitchcock, onde em 470 páginas analisa a obra filme a filme. Já o biógrafo Patrick McGilligan, em A life in light and darkness dedica apenas pouco mais de uma página em um livro de 700, e o considera “Uma pálida sombra da peça original”, escrita pelo então badaladíssimo dramaturgo Noel Coward. O biógrafo oficial Michael Hayes mal o cita em Hitch e Robin Wood praticamente o ignora em seu ótimo Hitchcock’s films revisited. Muitos podem ter sido influenciados por Chabrol e Rohmer no livro Hitchcock, publicado nos anos 50, onde comparam o filme à peça original de Noel Coward e equivocadamente vaticinam: “Nada interessava a Hitchcock nessa história da divorciada que não consegue refazer sua vida”.
No entanto, este é um dos filmes que mais cresce numa revisão atenta, ao ponto de hoje considerá-lo um dos mais talentosos, criativos e modernos do período britânico do diretor, repleto de boas fusões de imagens, e clima expressionista em sintonia com o universo em desequilíbrio que retrata. Além disso apresenta uma visão moderna em relação ao machismo da sociedade que oprime a mulher, o que é surpreendente para a época. Há ainda olhares para a câmera, subjetivas do juiz e elipses de tempo marcadas por closes em objetos.
Easy virtue [Nota do editor: que recebeu título em português como “Mulher pública”] forma com The ring (1927) e Manxman (1929) uma trilogia sobre a traição. Enquanto The ring mostra a traição movida pelo desejo, e Manxman uma traição não proposital, causada pela chegada da notícia (posteriormente desmentida) de que o noivo da moça morreu, Easy virtue tem como foco as consequências de uma traição que na verdade não ocorreu.
É a história de Larita Filton (Isabel Jeans), a mulher de um milionário da alta sociedade que contrata um pintor famoso para fazer um retrato de sua esposa. O problema é que ele se apaixona e tenta assediá-la. Larita recusa, e o marido chega justamente no momento em que ele tentava beijá-la. Ao ver o pintor com sua mulher nos braços, acha que estavam tendo um caso e agride o rival, que saca uma arma para se defender. A cena é um tanto confusa, pois o marido é baleado, reage e tudo termina com Larita segurando o marido ferido nos braços. Na cena seguinte, já no tribunal, ficamos sabendo que o artista se suicidou. A cena do suicídio é particularmente confusa, pois está cortada no momento em que o pintor olha para a arma, desesperado pela chegada dos policiais. Embora o corte aparentemente seja causado pelo desgaste da cópia antiga, tudo indica que foi uma opção dos produtores, pois cópias em versões francesas e até uma italiana, disponíveis na Internet, também não mostram o suicídio. O tema sempre foi tabu no cinema.
Na primeira parte do filme, até o fim do julgamento, tudo é filmado de forma soturna, bem ao estilo expressionista, com cenários distorcidos e arquitetura gótica. Hitchcock abusa da criatividade, com boas fusões de imagens, ora no monóculo do juiz, ora numa garrafa que está nos dois tempos das idas e vindas por flash backs do tribunal aos fatos ocorridos. Toda a história é narrada ao juiz à maneira de Kurosawa no posterior Rashomon (1950).
O filme começa com o julgamento. O marido, revoltado com a suposta traição, pede divórcio. Estamos em 1928, época em que o fim do casamento significa não só um escândalo, mas a ruína moral para uma mulher (mas não para o homem, claro). Para piorar, os dois são famosos na alta sociedade e tudo vira escândalo nas manchetes. Condenada e execrada publicamente em uma sociedade hipócrita, só resta a Larita mudar-se para outro país. Nisso ela é diferente da maioria dos inocentes acusados injustamente que povoam boa parte da obra de Hitchcock e normalmente fogem para provar sua inocência.
Curiosamente, duas outras inocentes acusadas injustamente em sua obra sequer querem provar a inocência: a protagonista de Assassinato – Mary (1931) e a de Agonia de amor” (1947), mas é importante destacar que nesses filmes os contextos são diferentes: as mulheres tentam proteger pessoas queridas.
Em termos sociais Easy virtue é um filme muito moderno pois, em pleno 1928, mostra o ponto de vista da mulher vítima da sociedade machista. O julgamento é implacável e tudo é dirigido por Hitchcock de modo que o espectador sinta na pele a angustiante injustiça que ela sofre.
A mulher já estava condenada antes mesmo do julgamento começar. O promotor (Ian Hunter, o pugilista rival de The ring e também o rival em Downhill) se refere ao pintor como ‘seu amante’, e a plateia presente ao tribunal vaia a ‘adúltera’ ao ponto do juiz ter de pedir silêncio. A vaia é um linchamento verbal que remete ao apedrejamento bíblico de Madalena, elemento caro à formação católica do diretor. Larita não tem a menor chance de justiça. Para piorar, o júri é composto por oito homens e apenas quatro mulheres tão machistas quanto os homens.
Condenada pela Justiça e pela sociedade, ela muda-se para o Sul da França, no Mediterrâneo (muitas externas foram filmadas em Nice), a fim de tentar esquecer o escândalo e reconstruir sua vida. A cena em que ela resolve mudar o sobrenome ao assinar o registro no hotel representa sua aceitação do fato de não ter como enfrentar a sociedade, embora possa ser vista também sua forma de enfrentar o problema. Sua hesitação em fazê-lo mostra o dilema moral que a mulher vive. Detalhe: essa cena lembra muito a mesma situação em Psicose, quando Marion chega ao motel de Norman Bates e assina o registro com nome falso.
No hotel ela conhece John Whittaker (Robin Irvine, o colega de Downhill) e os dois se apaixonam. Os primeiros passeios e o namoro remetem à mesma situação em Rebecca, que tem locações em Mônaco, na mesma região. Na sequência John a pede em casamento e ela, hesitante, promete telefonar mais tarde para responder se aceita ou não. A seguir Hitchcock realiza uma das cenas mais originais de sua carreira (destacada por ele na famosa entrevista com Truffaut), uma das inúmeras provas de seu apreço pela comunicação visual que ele aprendeu com Murnau em seu período de filmagens na Alemanha, e norteou toda sua carreira. O diretor mostra a telefonista do hotel recebendo a ligação de Larita e passando-a para o quarto de John. Mas ela fica ouvindo a conversa do casal e é apenas pelas expressões de seu rosto que o espectador entende se ela aceitou ou não se casar. Na cena seguinte, já estão casados.
Ironicamente, o virtuosismo dessa cena acaba ofuscando sua finalidade enquanto narrativa, que é mostrar a indecisão de Larita entre assumir seu passado sabendo que provavelmente será condenada, ou levar a vida em frente escondendo-o. E é um desdobramento daquela em que decide assinar a entrada no hotel com outro nome. É um dilema algo semelhante ao protagonista do anterior Downhill, que não quer entregar o verdadeiro culpado, seu melhor amigo, e reaparecerá em A Tortura do silêncio (1952).
Não há como confirmar, mas é possível que o próprio Hitchcock tenha sido o diretor de fotografia dessa cena. Na biografia de McGilligan consta que o fotógrafo Claude McDonnell adoeceu durante as filmagens e precisou ser internado por alguns dias. Hitchcock entendia de fotografia como poucos, ao ponto de saber qual lente usar em cada cena, opinar no uso da luz etc. Ele detestava qualquer atraso no cronograma das filmagens e, ao longo de sua carreira, mais de uma vez substituiu o fotógrafo em casos de doenças breves. Na entrevista com Truffaut consta que dirigiu a fotografia de cenas de The Ring e segundo Russel Taylor, ele dirigiu a fotografia de algumas cenas quando John J. Cox ficou doente. É provável que isso também tenha ocorrido em outros filmes, mas nunca saberemos. O fato é que Cox e Hitchcock eram muito amigos, praticamente inseparáveis durante as filmagens, sempre rindo e falando piadas chulas nos intervalos. Não por acaso, fizeram 11 filmes juntos. A parceria só perde para a posterior com o genial fotógrafo Robert Burks que, nos anos 1950 e 1960, fotografou 12 filmes do diretor e foi seu mais importante colaborador. Depois de Alma Hitchcock, claro.
Na parte do filme em que Larita está no Mediterrâneo e começa o namoro, o diretor deixa de lado a ambientação expressionista. O filme se torna solar e alegre, com alguns momentos de humor, incluindo a cena da telefonista e a rápida aparição do diretor durante o jogo de tênis. Mas pouco depois do casamento, quando ela vai morar na mansão da família, tudo volta a ser sombrio. Desde o início o espectador tem a sensação de que a felicidade da mulher vai durar pouco e clima de pesadelo é perfeitamente destacado pela atmosfera expressionista. O mundo da mulher voltou a estar em desacerto.
O suspense é baseado na iminência de Larita ser reconhecida e seu passado destruir a felicidade. Isso tem início quando a sogra comenta que acha que já viu o rosto da nora antes. Tempos depois Larita descobre que o promotor do seu julgamento é amigo da família de seu novo marido, estando presente ao casamento, o que aumenta a tensão. Esse tipo de situação, do passado perseguir um personagem podendo arruinar seu casamento ressurge em Marnie, confissões de uma ladra, quando Marnie é reconhecida por uma vítima no hipódromo.
Desmascarada pela sogra pela reportagem sobre o divórcio em uma velha revista, Larita passa primeiro por um julgamento doméstico, o da família do marido, na sala da mansão. É um pequeno tribunal, tão cruel e injusto quanto o que abre o filme. A mulher é novamente humilhada. Detalhe: a sala de jantar da família é repleta de imagens de santos católicos, que remetem à questão da culpa católica, tão presente na obra do diretor. Ironicamente, num retrato da hipocrisia reinante, casa e sociedade não conhecem o perdão, um dos fundamentos da religião.
Diferentemente do primeiro julgamento, quando fica cabisbaixa diante da humilhação, agora Larita não perde a altivez. No mesmo dia do julgamento familiar há uma festa marcada para a noite. A mãe dominadora aconselha que ela permaneça no quarto e não participe, “para não rebaixar ainda mais o nome da família”. Ela faz que aceita, mas no meio da festa desce a escada bem vestida e deslumbrante, deixando a família em suspense pela possibilidade dela fazer alguma declaração.
Vale destacar a relação do diretor com as escadas, presente em toda sua obra (e na maioria dos filmes expressionistas). Quando ela chega à mansão da família, recém casada, a sogra desce a mesma escada, imponente e algo assustadora.
Alinhado com a condenação familiar, o marido pede o divórcio e o caso vai de novo parar nos tribunais, fechando a narrativa circular que começa e termina num tribunal. Ao final há uma cena que Hitchcock detestava ao ponto de citar na entrevista com Truffaut. Cercada por fotógrafos na saída do tribunal, ela diz: “– Fotografem. Não há nada mais para matar aqui!”. Pessoalmente acho um exagero de Hitchcock e não será a única vez em que ele errará na apreciação de sua obra. A cena é interessante, pois retrata o conformismo da mulher humilhada num mundo machista, constatando definitivamente que não conseguirá fugir da condenação social.
Contando o desaparecido Montain eagle, este é o terceiro filme feminino de Hitchcock e o primeiro a enfocar uma mulher oprimida em uma sociedade machista. Nesse sentido Easy virtue é um filme moderno e feminista. Os homens são fracos, agindo em função da sociedade, enquanto as mulheres são determinadas. O homem pode se divorciar sem problemas, mas a mulher é estigmatizada. O fato de Hitchcock mostrar que ela é inocente desde o princípio permite ao espectador vivenciar o sofrimento causado por uma sociedade retrógrada, estimulando algum questionamento, algo muito raro, senão único à época.
Por tudo isso, Easy virtue é uma das mais gratas surpresas do período mudo do diretor. Um filme pouco estudado, subestimado e repleto de situações que ele voltaria a trabalhar no futuro. Além das citadas anteriormente, destacaria também que o envolvimento com o pintor, do início, reapareceria em Blackmail (1929), pois é um pintor que convida a protagonista a subir ao apartamento onde será morto. A condenação injusta no tribunal reapareceria em Assassinato – Mary (1931). A situação da mulher de alta sociedade envolvida em escândalos que se depara com uma família conservadora e caipira, onde há outra mulher preferida pela família do homem, reapareceria em Os pássaros (1963).
Infelizmente Easy virtue foi um fracasso de público e acabou se tornando o último filme de Hitchcock para a Gainsborough de Michael Balcon, o produtor que o descobriu para o cinema. O filme seguinte, The ring já seria produzido pela British Internacional Pictures (BIP), estúdio com modernas instalações e no qual o diretor teria total liberdade criativa. Além de rejeitado pelo público, nunca teve boa acolhida pela crítica, muito pela avaliação equivocada dos críticos da Cahiers du Cinéma. A situação permanece até hoje. Uma injustiça, pois é um filme inteligente, com grandes momentos, digno de merecer uma revisão que o coloque num lugar bem melhor na obra do diretor.
Por último, não se pode falar em Easy virtue sem destacar a atuação segura de Isabel Jeans. Ela já havia aparecido antes como a mulher fatal que se casa com o protagonista de Downhill, mas aqui seu talento brilha, seja nos momentos em que está depressiva, durante os julgamentos, passando pela breve felicidade do namoro e a altivez com que encara tanto a família do marido quanto o segundo julgamento. Seu talento, somado ao de Hitchcock, são a espinha dorsal deste excelente filme.
Oito curiosidades sobre Easy virtue:
– Anos antes do filme a boa atriz Isabel Jeans foi casada com Claude Rains, o genial vilão de Notorius (1946). Curiosamente, em Downhill, filme anterior do diretor, ela fazia uma atriz que se casava com o protagonista, torrava todo seu dinheiro e tinha um caso com um milionário. Ou seja, era exatamente o oposto de Larita. E ela vai bem nos dois tipos de personagem.
– Este filme traz a segunda aparição de Hitchcock em seus filmes, durante a partida de tênis no hotel. Mas o importante é que é a primeira realmente intencional, pois a primeira, em The lodger, o diretor garante que foi por necessidade: havia falta de extras. Ele só voltaria a aparecer nas telas em Blackmail (1929).
– A peça que deu origem ao filme foi grande sucesso em Londres e Nova York no ano anterior às filmagens e havia sido muito elogiada pela crítica. O autor Coward e Hitchcock foram amigos por muitos anos.
– Não deixa de ser irônico que a história de uma mulher injustiçada seja também um dos filmes mais injustiçados do diretor.
– A cena da fusão do monóculo do juiz com a imagem que ele via era difícil de fazer e foi preciso recorrer a uma trucagem. Foi feito um monóculo bem grande de modo a poder ser desfocado e coincidir com a imagem do advogado. Truque semelhante foi usado depois em Disque M para matar, quando um dedo gigante é usado para discar o tal “M” no telefone.
– Easy virtue é o primeiro de muitos filmes do diretor com cenas em tribunais, ele que, quando jovem, gostava de frequentar julgamentos sobre assassinatos. É também o quarto filme cujo tema é um falso culpado, se contarmos com o perdido Mountain eagle que, pela sinopse, também trata do tema. Ao longo da carreira retomaria o assunto mais 13 vezes.
– É também o primeiro com a presença de uma mãe dominadora e possessiva com seu filho. Elas ressurgem em Notorious, Os pássaros, Pacto sinistro, e de certa forma na mãe morta de Psicose, cujos traumas tornaram doentia a mente do filho.
– Tanto a mãe de Easy virtue quanto a de Notorious dão um sorriso de prazer quando as noras são desmascaradas. Ambas gostariam de ver os filhos casados com outras, assim como a mãe de Os pássaros.
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