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Entrevistas

Entrevista / Fernanda Montenegro

Nossa dama maior comenta sua carreira no cinema e revela com quem gostaria de trabalhar.

Por Felipe Berardo | 07.10.2019 (segunda-feira)

– publicado em 09 de maio de 2005 no jornal Folha de Pernambuco

Arlette Pinheiro Esteves da Silva, 75 anos, é mais conhecida como Fernanda Montenegro. E põe conhecida nisso. Dona de uma brilhante carreira como atriz de teatro, cinema e televisão, Fernanda encabeça, junto à filha Fernanda Torres, o elenco do filme Casa de areia, dirigido pelo genro, Andrucha Waddington. O filme, que cobre 59 anos de uma família vivendo isolada num areal no norte do Maranhão, entra em cartaz sexta-feira. Nessa entrevista, a atriz fala das dificuldades e do prazer de filmar num lugar isolado, fala de sua carreira e de sua admiração pelo cinema brasileiro.
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Entrevista: Fernanda Montenegro

Qual o seu maior cuidado ao compor os personagens de Dona Maria, e Áurea nas várias épocas de Casa de Areia?

O maior cuidado foi atravessar 60 anos de história às vezes envelhecendo dez anos e mudando de personagem. Faço cinco ou seis mudanças de maquiagem, de postura e também de interior. Faço a mãe, a filha e depois filha e mãe (risos).

Como foram as conversas com Fernanda Torres? Uma se deixou impregnar pela outra quando montavam os personagens?

Nesses roteiros a gente geralmente trabalha com um ano de antecedência. Temos reuniões, propomos, repropomos, é um método para irmos nos aproximando do que vamos fazer. Nos últimos dois meses tivemos um trabalho mais intenso de leitura e conversas a respeito. Já começamos a ver maquiagem e figurino. Não é um trabalho feito da noite para o dia. Quando chegava para filmar já tínhamos uns bons seis meses, no mínimo, de aproximação com o processo.

Qual o maior desafio que Casa de areia te proporcionou?

O projeto como um todo. Não era ali do lado da casa da gente. Era no Maranhão. Foram dois meses morando lá. A família toda se deslocou. A Fernanda (Torres), meus netos depois, fomos todos embora. Mas foi uma mudança muito rica e feliz pois conhecemos um lado do Brasil que não conhecia. Entramos em contato com uma região e uma população maravilhosa. Foi uma aventura, como se fosse uma viagem à Legião Estrangeira.

O desafio foi mais físico que dramático?

Não existe isso. Acho que as dificuldades do ponto de vista dramático são resolvidas pela própria locação. Ela dá um base muito rica para você viajar. Uma coisa é você no Rio de Janeiro, sentado a uma mesa falando e vendo fotografias dos lençóis (do Maranhão), outra coisa é quando você chega lá e aquilo lhe impregna você de uma força e de uma possibilidade de criação ilimitada.

Obviamente você tem mais experiência na dramaturgia que o Andrucha. Ao mesmo tempo, ele deve estar mais familiarizado do que você com a narrativa de cinema que se pratica nos dias de hoje pelo mundo. Então, imagino que durante as filmagens havia uma colaboração mútua entre vocês?

Ele é um cineasta. Sabe onde pôr a câmera, o que quer do andamento, do tempo do filme, do tempo das cenas. E, sim, todos colaboravam. Foi tudo muito harmonioso. Nandinha e eu tínhamos uma base bem colocada do que se pretendia como inter-relação dramática. A partir daí fomos um instrumento do Andrucha. Um pouco mais, um pouco menos, isso ficou a critério dele. Geralmente no cinema há um sequenciamento de filmagem diferente do que se vê na tela, mas aqui fizemos na ordem que se vê no filme. Inclusive porque era tanta maquiagem, tanta troca de figurino que, para não nos perdermos, filmamos na ordem. Tudo comandado pelo Andrucha.

Casa de areia é um filme feminino dirigido por um homem, é um aspecto curioso.

Mas o Andrucha tem uma filmografia sobre o feminino… Já foi assim em “Gêmeas”, em “Eu, Tu, Eles” e assim em “Casa de areia”. Eu acho que talvez dentro do panorama dos cineastas brasileiros, ele seja o único, até instintivamente, envolvido por esse mistério do feminino. Ele tenta descobrir o que é isso. Não é que ele divinize a mulher não. Pelo contrário, ele busca impressões no feminino. Acho o filme dele impressionista. É um filme cósmico, lunar. Tem areia, mas tem muita água, lagoa, que são elementos femininos.

E em quais momentos você enxerga como o de um olhar masculino?

Está na demonstração de que a vida só se harmoniza quando você encontra seu par. No filme, personagens vêm perdidos até o momento em que a Áurea se entrega àquela cultura, àquele homem daquela cultura e eles se ordenam, se organizam. Aceitando a negritude daquela cultura, se bandeando pra aquela cultura, menos oprimida, menos opressora. Mais de acordo com a natureza.

Cena de “Casa de Areia”

O que mais te atrai no cinema brasileiro?

Minha geração é cria de cinema. O cinema brasileiro tem uma coragem de investir no criativo, no artístico. Isso não é fácil. Acho que todo cinema latino-americano se confunde um com o outro, mas a maneira de filmar a nossa terra, a paisagem da nossa terra, mesmo sendo continental, a maneira interpretativa, a maneira como os cineastas tocam na temática brasileira. O cinema brasileiro é altamente autoral.

Entre A falecida (1965), de Leon Hirszman, e Casa de areia são 40 anos. O cinema brasileiro mudou em alguns aspectos nesse período. O que você diria que se manteve daquela época e o que é novo hoje no que diz respeito a atuar no cinema brasileiro?

Nunca pensei que eu tivesse uma filmografia. Mas agora em Paris, no último Festival de Cinema Brasileiro, eles me deram um prêmio pela filmografia, aí eu fui pensar a respeito. Porque até Central do Brasil eu fazia um filme de sete em sete anos. “Central…” mudou um pouco o foco de minha vida artística. Nesse último ano, participei de quatro filmes. Mas o que mudou? Acho que as mudanças começaram com o Pagador de promessas. O Anselmo Duarte [diretor do filme] foi buscar um ator de teatro, o Leonardo Villar, que deu um corpo extraordinário ao personagem. Mas havia nessa época uma certa ojeriza com a gente de teatro porque achavam que esses eram teatrais, no mau sentido. Tinham os atores de cinema, alguns muito bons, que não eram impregnados por essa presença teatral. Aos poucos, a partir do Glauber [Rocha], nós, atores de teatro e de televisão, começamos a ter vez no cinema brasileiro. Acho que houve um caminhar, uma união de propósitos. Do ponto de vista técnico, mesmo os filmes menos ambiciosos tem hoje em dia excelente som e revelações técnicas.

No quesito técnico, os avanços foram muitos, e não estou vinculando isso a evolução da qualidade dramatúrgica.

Mas uma coisa está ligada a outra. O cinema popular usava sempre atores de teatro de revistas, cômicos, sempre foi uma representação muito sublinhada pelo humor. Todas as chanchadas eram extraordinariamente certas de seu propósito. Todos os atores, como o extraordinário Oscarito, vieram do teatro de revista. Mas o cinema dramático, empenhado com proposta mais diferenciada enfim, nesses os roteiros vieram se apurando e também nós todos. Ao fazer cinema, começamos a aprender a lidar com o cinema.

Quais as melhores lembranças que você tem de A falecida, de Tudo bem (1978) de Arnaldo Jabor, e de Eles não usam black-tie (1981) também de Hirszman?

Em A falecida, todos estávamos no primeiro filme. Era o primeiro longa de Hirszman. Tinha um bossa carioca, ficou meio folclórico. O Hirszrman tinha 24 anos, e quis fazer um filme denso, na atmosfera e no sol do Rio, e conseguiu. Não tinha recurso nenhum e tínhamos muito carinho por aquilo tudo. Tudo isso se repetiria em Eles Não Usam Black-Tie, e neste tive a oportunidade de trabalhar com um grande companheiro, que era o [Gianfrancesco] Guarnieri. E esse filme foi feito numa hora complicada, com aquelas greves todas, com o ABC (Paulista) quase pegando fogo, com helicópteros, policiais, cães e no meio disso, todos aqueles abnegados do sindicato, uma loucura. Todos os dias achávamos que o filme não iria ser concluído e, de acordo com o que acontecesse, que não iria nem ser exibido. Já o filme do Jabor também foi um filme sem dinheiro, dentro de um apartamento e, mais um vez, trabalhei com Paulo Gracindo, que nunca quis fazer cinema porque achava chato e eu dizia “mas Paulo, é a maneira que a gente tem de deixar um pouquinho ali da gente” (risos). O Tudo bem é um filme delicioso. É um filme que vai abrindo, abrindo e termina pictórico inundando a tela com as águas de Sete Quedas. Depois que o filme ficou pronto, o Jabor precisou colocar dez chamadas na Rede Globo que custaram o valor da produção do filme. (risos).

Qual personagem gostaria de ter feito no cinema? E com qual diretor gostaria de ter trabalhado no passado?

Não tenho projetos pra minha vida. Vou vivendo cada dia. Fui convidada pelo Glauber [Rocha] para fazer o Terra em transe, mas eu estava comprometida com uma companhia de teatro e não pude; quem fez foi a Glauce [Rocha] que estava ótima, e ali tem um testemunho da qualidade de atriz que ela era. Adoraria ter trabalhado com o Glauber. Quanto aos estrangeiros, queira ou não queira, a gente que faz teatro acaba no [Ingmar] Bergman. Porque ele trabalha no ator. A grande paisagem dele é, por excelência, o ser humano. Isso para mim, como atriz, é atraente. Gosto também de [John] Ford, de [Stanley] Kubrick e de todos os cineastas italianos, mas acho o que nos fala mais forte é o cinema do Bergman. Queria ainda destacar o Central do Brasil, que foi angular para mim, para o Vinícius [de Oliveira] e para o Walter [Salles]. Foi um filme pequeno, que fizermos resguardados, e caminhamos pelo mundo com ele. Um filme do coração que de repente abriu caminhos e em que formamos uma verdadeira família.

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Filmografia de Fernanda Montenegro

2005 – Casa de Areia
2004 – Redentor
2004 – O Outro Lado da Rua
2004 – Olga
2003 – Chão de Estrela
2000 – O Auto da Compadecida
1999 – Gêmeas
1999 – Traição
1999 – Fernanda Montenegro: Arte, Técnica e Talento (curta-metragem)
1998 – Central do Brasil
1997 – O Que é Isso, Companheiro?
1994 – Veja Esta Canção
1988 – Fogo e paixão
1985 – A Hora da Estrela <../../filmes/hora-da-estrela/hora-da-estrela.asp>
1981 – Eles Não Usam Black-Tie
1978 – Tudo Bem
1976 – Marília e Marina
1973 – Joanna Francesa
1970 – Minha namorada
1965 – A Falecida
1955 – Mãos Sangrentas (dublagem)

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