3. Mostra Sesc (2019) – “Mateus”
Déa Ferraz torna a grandeza da arte popular universalmente reconhecível.
Por Luiz Joaquim | 07.11.2019 (quinta-feira)
PARATY (RJ) – É sempre gratificante se deparar com uma peça artística que dissolve eventuais amarras fáceis de serem preestabelecidas pelo inadvertido beneficiário dessa obra. Mais do que isso: é educativo. É revigorante.
A realizadora pernambucana Déa Ferraz, ao lado do ator Cláudio Ferrario, apresentou na tarde de ontem (6) aqui, na 3a Mostra Sesc de Cinema, o documentário Mateus. Filme que, com pouca margem de erro, é o mais envolvente sobre a cultura do cavalo-marinho, do universo da cultura popular nordestina. A obra é mais especificamente sobre um de seus personagens, o ‘Mateus’, incluindo aí sua parêa, a Catirina (ou Catita).
Ao leitor desconhecedor dos elementos do folguedo, Mateus e Catirina são, na mais simples definição, palhaços que atiçam a curiosidade da população sobre o cavalo-marinho, sobre o maracatu. Com rosto pintado do preto da graxa, e de posse de uma bexiga cheia de ar, “perturbam” a paz com muita munganga e presepada, recheada de malícia sexual.
Mas o filme de Déa não está interessado em ensinar isto. Apesar de educativo, não é professoral. Um dos pontos de partida da diretora – que coassina o roteiro com Bia Baggio (também montadora) – é entender: o que leva uma pessoa a se tornar o ‘Mateus’ da brincadeira? (mais abaixo falaremos de um outro ponto de partida deste filme).
Para ir ao encontro de uma possível resposta, Cláudio Ferrario pilota o Trovão Azul (na verdade um Fusca 1978) em direção à Zona da Mata Norte pernambucana. Saindo do Marco Zero do Recife, ele leva junto Odília Nunes, uma das luzes que brilha forte em Mateus.
Os dois fazem do Trovão Azul parte da estrutura que monta um mini-picadeiro nos municípios do interior pernambucano para apresentarem-se como, respectivamente, os palhaços Jurema e Bandeira. E aí, aquilo que inicia como um despretensioso road-movie clownesco desemboca numa muita delicada obra de observação, participação, reconhecimento e aprendizado por parte dos atores, da equipe e, logicamente, do espectador.
No passeio pelo sertão, Jurema e Bandeira buscam ‘Mateus’ tão consagrados quanto humildes e sábios em seu ofício de brincar e respeitar a brincadeira. Nos apresentam (e brincam) com quatro deles: Seu Luiz, Zé de Bibi, Mocó e Martelo.
Nestas conversas a respeito do que pode qualificar um bom ‘Mateus’ Odília e Cláudio tornam-se entrevistadores, ou melhor, proseadores, tal o nível de descontração que estabelecem com os mestres. A consequência do encontro com os quatro entrevistados – todos sertanejos septuagenários ou perto disso – sempre encerra com os Jurema, Bandeira e Mateus caracterizados, improvisando na brincadeira.
Pelas brechas de tanta encenação, Mateus, o filme, deixa transpassar que há ali uma qualidade de performance muito pautada pelo improviso, é verdade, mas que também é dona de uma lógica e técnica que não deixam a desejar ao que há de sofisticado no melhor teatro.
Uma primeira impressão deste que aqui analisa cinema é a de que um analista de artes cênicas, de qualquer parte do mundo, poderia enxergar o tesouro artístico que são as presepadas de Mateus e Catirina no cavalo-marinho. Presepadas centenárias que tem na própria longevidade o argumento maior de sua riqueza.
Neste que é o terceiro (e melhor) longa-metragem de Déa Ferraz, o outro ponto de partida valioso e bem administrado é entender a posição da mulher dentro de uma tradição tão masculina (as ’Catarinas’ são vividas por homens).
Odília, com uma sabedoria própria, vai conquistando os quatro ‘Mateus’ mansamente para propor-se encarnar ela própria uma Catita. É bonito de ver seu respeito e cuidado com aquilo que é sagrado para aqueles homens calejados de uma vida dura sendo muitas vezes o cavalo-marinho o grande momento de suas existências. “Eu morreria feliz se morresse brincando!”, grita Ferrario a bordo do Trovão Azul, destacando que perdeu as contas de quantas vezes ouviu essa fala sair da boca dos mestres.
Após uma das brincadeiras, a própria Odília problematiza com Ferrario a sua “intromissão” nessa ordem das coisas, uma vez que os próprios brincantes homens não entendem bem como avançar ou recuar diante da intimidade na brincadeira com uma “menina”.
Num outro aspecto também de aprendizado, e talvez o mais valioso profissionalmente, aqui conquistado por Déa e seus parceiros nesta experiência, é a percepção da construção de um filme a partir do encontro. Mateus parece um projeto que inicia aberto, a ser descoberto. E descobre-se. É uma descoberta de beleza que, inclusive, consegue ser impressa no filme.
Um comovente exemplo disto aparece já no final, quando, sentados no degrau da porta de entrada da casa de Martelo, Odília e Ferrario ficam mudos sempre que o mestre vai lá dentro buscar qualquer coisa. A mudez dos dois, a incapacidade de falar, reflete uma espécie de pequenez diante do tamanho da autenticidade e da grandeza de Martelo com a sua própria arte.
É a mesma mudez do encantamento, respeitoso, com a qual Mateus, o filme, impregna o seu espectador. Uma conquista doce, tranquila, segura e honesta que só bons filmes podem pleitear para si.
*Viagem a convite da Mostra
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