3. Paraty (2019) – “Amor Maldito”
Curtas do Norte e um muito atual filme, de 35 anos atrás, sobre o amor lésbico
Por Luiz Joaquim | 04.11.2019 (segunda-feira)
– fotos, Luiz Joaquim
PARATY (RJ) – No mais do que simpático Cinema da Praça, aqui em Paraty, houve ontem (3), segundo dia da 3a Mostra Sesc de Cinema, a exibição de Amor maldito lançado originalmente em 1984 pela homenageada desta edição, Adélia Sampaio.
No comecinho da noite, uma fila já se formava a frente da salinha de 79 lugares, na Praça Monsenhor Hélio Pires (ou apenas Praça da Matriz), reaberta pela atual gestão municipal de Luciano Vieira Vidall no mês de julho de 2018 – após 45 anos fechado.
Muito bem equipado, com um projetor Barco de resolução 2K e um processador Dolby CP-750, a sala e sua gestão, com programação diversificada, deveria servir de exemplo a outras cidades interioranas pelo País.
A sessão homenagem reuniu curiosos para re(ver) Amor maldito em 2019, ano em que o tema do filme reverbera (infelizmente) com extrema atualidade mesmo após 35 anos de seu lançamento original (também conturbado).
Renegado pela Embrafilme, conforme contou a diretora em debate após a projeção, Amor maldito foi realizado na base do cooperativismo do toda equipe e elenco, como bem pontuou a crítica sergipana Suyene Correia Santos, mediando a bate-papo.
O motivo de tanta tensão? Seu tema e o tratamento dado por Adélia em Amor maldito que, a propósito, nasceu de um fato policial no Rio de Janeiro: o suicídio de uma garota que foi usado como pretexto para um julgamento condenatório de sua amante.
No filme Monique Lafond interpreta Fernanda, que ajuda a ex-miss Sueli, vivida por Willma Dias (mais lembrada como a mulher que saía da banana descascada na abertura do televiso O planeta dos homens). Sueli deixa a casa da família de protestantes, sob o julgo do duro pastor, pai da miss (Emiliano Queiroz).
Ver Amor maldito em 2019 é tristemente assustador quando percebemos que alguns dos diálogos absurdos durante o julgamento de Fernanda, por parte do advogado de acusação e do pai-pastor, voltaram a ganhar ressonância nos dias de hoje a partir de pensamentos retrógrado, quase medievais, quanto o tema é a opção sexual das pessoas.
Apesar de algumas performances histriônicas, narrativa atropelada e diálogos reiterativos, o filme está interessado mesmo é em estabelecer com o espectador um acordo. O de que Fernanda pode amar quem ela quiser sem ser condenada por isso.
Não à toa, escutamos sua manicure (Neuza Amaral) dizer repetidamente na corte, diante do questionamento do advogado de acusação (Vinícius Salvatori), que “a vida de Fernanda não é da minha conta”.
Ou ainda, por exemplo, nos dois únicos momentos em que personagens olham diretamente para a câmera e são assertivos, objetivamente para o espectador. Falam as vozes do advogado de defesa (Tony Ferreira) destacando que sua cliente “já é vítima de uma sociedade contrária a ela”, e da própria Fernanda quando diz “Eu amava Sueli”, em tom de desabafo.
Durante o debate, o CinemaEscrito tentou fazer uma pergunta a Adélia conectando o delicado tema de seu longa-metragem ao belo e igualmente contundente O menino e o vento, filme realizado por Carlos Hugo Christensen durante a Ditadura, 17 anos antes de Amor maldito.
A pergunta não foi concluída porque, infelizmente, a diretora preferiu interpelá-la, confrontando a questão e se confundindo, além de desvalidar a obra de Christensen. Nas palavras dela “ele demorou a sair do armário” e, ainda, creditou erroneamente a direção de O menino e o vento a um outro cineasta.
Ao lembrar o caso do não envio por parte da Embrafilme da cópia de Amor maldito ao Lesbian Gay Festival, em São Francisco, Califórnia (EUA) – o filme enviado foi Asa Branca (1981), de Djalma Limongi Batista -, Adélia também se confundiu referindo-se ao seu protagonista como Mário Gomes (quem nem é do elenco) quando, na realidade, é o Edson Celulari.
Com a ajuda de Dudu Constantino, figurinista e cenógrafa do filme, que falava inglês com fluência, o festival entendeu o erro no envio do filme e resolveu comprar uma cópia de Amor maldito por 40 mil dólares, dinheiro com o qual Adélia conseguiu terminar de pagar a todos que investiram na produção.
CURTAS – O primeiro programa competitivo da Mostra também exibiu ontem no Cinema da Praça. O ‘Programa Brasil Norte 1’ projetou quatro curtas-metragens vindos do Amazonas, de Rondônia, Acre e Pará (sobre este último, o filme Chamando os ventos: Por uma cartografia dos assobios, de Marcelo Rodrigues – leia a respeito aqui).
Em O céu dos índios Desâna e Tuiuca (AM) Flávia Abtibol e Chicco Moreira revelam uma muito interessante cultura de duas etnias indígenas a respeito de uma cosmologia bem particular. Dá voz aos índios para falarem de como as constelações, batizadas de “homem velho”, “ema”e “surucucu” pelos seus antepassados, lhes ajudam a entender os processos das estações do ano, pontuando sua relação com o plantio na terra e com a caça.
Já em Vozes da memória Raíssa Dourado fez um tocante retrato cultural sobre as transformações deste campo ao longo do tempo na capital Porto Velho. Passando pela história de sua imprensa, por personagens simbólicos da cidade, pelos diversos ciclos da exploração natural da cidade, entrando pela produção audiovisual alternativa dos anos 1980 e também pela sua música, a diretora conseguiu estabelecer ritmo e coerência cativantes entre tantos temas distintos. O resultado é um registro envolvente e estimulante para se conhecer um pouco mais sobre uma cidade que costuma ganhar projeção nacional. Nesse sentido, Vozes da memória é um filme que deveria circular mais pelo País.
Com Francisco (AC) Teddy Falcão faz uma elipse interessante sobre identidade racial – envolvendo duas certidões de nascimento do protagonista – a partir de uma memória traumática de Francisco, que, criança, viu o pai ser assassinado por racimo. O filme, de maneira simples, nos relembra de forma competente o quanto a narrativa oral pode ser um trunfo a ser aproveitada num filme de baixo orçamento.
*Viagem a convite da Mostra
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