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Festivais

43. Mostra SP (2019) – Dois Papas

Dois Papas e um diretor inspirado

Por Ivonete Pinto | 06.11.2019 (quarta-feira)

A inspiração, a bem da verdade, está presente em cada função do filme Dois Papas (2019), que encerrou a 43ª edição da Mostra de Cinema de São Paulo. Raros filmes alcançam uma espécie de conceito AA de crítica e  do público. Quem mais fez ressalvas, como considerar Dois Papas como um “filme de propaganda” da Igreja Católica, ainda assim rendeu-se ao roteiro, à fotografia e à perfomance retumbante de Anthony Hopkins (Joseph Ratzinger) e Jonathan Pryce (Jorge Bergoglio). Para sermos apenas honestos, é preciso também reconhecer que se todos os elementos funcionam em estado de graça, alguém está a comandar o todo. Fernando Meirelles acumulou experiências estrangeiras o suficiente para se sentir à vontade neste projeto que parece fácil, afinal os personagens e quem os defende são imbatíveis. Mas o risco existia, ao menos de ter um resultado verborrágico, já que a narrativa é ancorada em diálogos. Mas que diálogos! A dramaturgia do roteirista Anthony McCarten ressoa Shakespeare em falas afiadas, com densidade filosófica que a montagem ágil não atrapalha. Ao contrário, imprime uma rapidez de raciocínio na audiência. A inteligência e a cultura dos personagens centrais, embebidas em ironia cortante, promovem em um prazer intelectual raro no cinema atual.

CONFISSÃO – Se fosse necessário destacar apenas um momento do filme, poderia ser o da confissão, em que a narrativa  respeita o rito do sacramento da confidência – que há alguns séculos é uma prática  privada -,  funcionando como um recurso dramatúrgico providencial. Quando o cardeal argentino ouve a confissão do papa, o filme convida o público a se retirar, a não ser testemunha do que é dito. Dois Papas, livremente inspirado em fatos reais como anunciado nos créditos de abertura, tomou muita liberdade, mas não chegou ao ponto de fazer com que Ratzinger admitisse que errou ao não punir e ao acobertar os padres pedófilos mundo afora. Mas o que a negação desta voz confessional provoca é a imaginação do espectador, que pode conjecturar que Ratzinger tenha pecado mais gravemente neste assunto. Teria sido o santo homem um abusador?

O filme mostra dois seres humanos, com suas fragilidades, e um passado obscuro.  Nele, há um equivalente à taquia islâmica, quando o então padre argentino não nega sua fé para evitar perseguição, mas nega sua vinculação com à resistência ao regime. Ele defendia ser estratégico conversar com os militares assassinos do regime militar para poupar vidas. Mas isto tem um preço e um peso que irá carregar para a vida toda. Teria sido conveniente para o filme deixar de fora este dado mal resolvido do passado do atual Papa. Porém,  ao contrário, sua vida parece tão correta, tão digna que o roteiro precisou valorizar este dado em tese desabonador para, ao fim e ao  cabo,  demonstrar a humanidade – e a infalibilidade –  de um Papa. Era preciso equilibrar um pouco com o perfil de Ratzinger, que por ser alemão era compulsoriamente nazista no entender de muitos.

Voltando aos diálogos, são nada menos que geniais e ditos com a precisão de timing e entonação dos grandes atores. O deleite de ver um espetáculo tão superior é uma experiência arrebatadora. A lamentar que não seja uma produção brasileira (Netflix).  Ao menos, não é um argentino. Há um conjunto de elementos que faz o filme funcionar do primeiro ao último plano, destaque para fotografia do uruguaio César Charlone, que por sinal já tem um Papa no currículo (dirigiu em 2007, com Enrique Fernández, O banheiro do Papa). Com Meirelles tem feito uma parceria que se configura como autoral. A câmara na mão que caracterizava boa parte da linguagem de Cidade de Deus (2002) aqui se mescla com os planos fixos para compor os polos opostos dos dois papas.

TRILHA – O som, por sua vez, rivaliza o destaque com a fotografia. A impressão que se tem é que todos estudantes de cinema deveriam tê-lo como aula. Um som que de fato contribui para a narrativa e não fica se exibindo (como em outro filme programado na Mostra, O juízo, de Andrucha  Waddington). Chama atenção a sequência no jardim do palácio de verão do papa. Jorge Bergoglio, o futuro papa Francisco (Jonathan Pryce), descobre as plantas do jardim e a sinfonia de sons é baseada em sons de pássaros e outros ruídos diegéticos do ambiente desta sequência. Sutil e original, é a demonstração do que pode um sound designer que entende sua função em um filme. Na verdade, a equipe de som tem nada menos do que 28 profissionais, incluindo um diretor artístico para ruídos (foley artist) e até um editor de diálogos. A trilha musical, igualmente inspirada, se dá graças à sintonia com o gosto musical nada ortodoxo do personagem argentino. Um dos momentos epifânicos é quando a trilha toca Abba. O Papa Francisco é pop e isto agrega ao flerte do filme para um amplo público.

Uma eventual nota dissonante poderia ficar  por conta de um quadro final demasiadamente positivo para o Vaticano: mesmo havendo a denúncia do futuro Papa Francisco de que a grande ferida da Santa Sé está na relação com seu sistema financeiro e na atitude condenável de Ratzinger quanto aos abusos sexuais dos seus pares, no cômputo geral fica uma boa imagem para a igreja. Imagem de equilíbrio pois a igreja está sendo pragmaticamente  sabia para administrar dois polos, o progressista e o retrógrado. A figura dos dois acaba tão positiva que quase leva ateus de carteirinha à conversão.

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