Ford vs. Ferrari
Filme joga luz sobre o verdadeiro talento por trás de uma histórica revolução na corrida automobilística
Por Luiz Joaquim | 16.11.2019 (sábado)
Lá nos longínquos anos 1970 havia uma animação japonesa muito popular exibida na televisão brasileira chamada Speed racer – que até virou filme (ruim) hollywoodiano em 2008. Nela, uma comunhão familiar dava o alicerce à paixão do protagonista Speed pela corrida automobilística. Essa sintonia que envolvia o pai de Speed, seu caçula gorduchinho, o macaquinho de estimação e um certo Corredor X contaminavam o espectador pelo afã da disputa de velocidade.
Em cartaz desde quinta-feira (14), Ford vs. Ferrari (Ford v Ferrari, EUA, 2019), de James Mangold (de Logan), afina-se muito mais ao espírito da animação japonesa do que a péssima adaptação feita para o cinema há 11 anos pelos irmãos Wachowski (de Matrix).
Para melhorar, aguçando ainda mais a curiosidade do espectador, Ford vs. Ferrari é inspirado numa história real. Conta como a Ford fez a Ferrari dobrar-se diante de uma vitória histórica na edição de 1966 da mítica 24 Horas de Le Mans, corrida francesa que dura as 24 horas do título e só é vencida por uma combinação entre resistência física (do piloto) e mecânica (do automóvel), aliada ao controle preciso da velocidade.
Anos antes, em 1959, Carroll Shelby (no filme, Matt Damon) consagrou-se como o primeiro norte-americano a vence a disputa, mas pilotando um Aston Martin, representando a Inglaterra.
Acontece, porém, que Ford vs. Ferrari está interessado é em contar o que se passou nos bastidores da gigante fabricante norte-americana de modo que ela decidisse comprar uma briga com o fabricante Italiano em Le Mans. A Ferrari era a dona do maior número de vitórias consecutivas até então. Venceu de 1960 a 1965, e tal recorde só foi batido em 1987, pela Porsch, com sete vitórias consecutivas.
Paralelo ao assédio que o então diretor de marketing da Ford, Lee Iacocca (Jon Bernthal), fazia a Henry Ford II (o ótimo Tracy Letts) para que a montadora apostasse em carros mais joviais, e tendo uma vitória no Le Mans como um objetivo de identificação com a juventude norte-americana e consequente aumento nas vendas, o filme também apresenta um personagem fundamental aqui: Ken Miles (Christian Bale, dando piscadelas para uma indicação ao Oscar 2020).
Amigo de Carroll, o britânico Miles era um exímio mecânico e piloto que só não chegava mais longe na carreira pelo temperamento intempestivo. O que havia de talento em Miles, havia de perigosamente imprevisível. Ao mesmo tempo, Ford vs. Ferrari também apresenta um outro lado do personagem, em seu ambiente familiar. É um espaço harmonioso – e duro pela falta de dinheiro – no qual a esposa Mollie (a irlandesa Caitriona Balf) marca o seu terreno como mulher, mas também deixa claro seu apoio como esposa ao sonho do marido.
Há ainda o filhote do casal, Peter (Noah Jupe, que já atuou como filho de Damon em Suburbicon: Bem-vindos ao paraíso, e foi visto também em Extraordinário). Peter funciona aqui como o fã número do pai. Aquele que conhece de perto os talentos do “looser” Ken e sonha junto com ele pelo lugar de reconhecimento que merece.
Além da cinematografia envolvente como Mangold resolve as cenas de ação aqui, o que há de muito atraente em Ford vs. Ferrari está no enredo que coloca em primeiro plano esse “looser” e o seu amigo Carroll.
Se Carroll precisou jovem largar as corridas para preservar a saúde, Ken quase bloqueou o seu talento como piloto para poder pagar as contas. O filme reforça o foco nestes dois – e particularmente em Ken – como se marca um texto com um pincel atômico.
O filme nos sussurra, assim, que sucessos de instituições gigantes só existem por causa da existência de pessoas especiais, geniais, artistas. Os primeiros nomes, numa empreitada de sucesso, costumam ser bons em tomar decisões. Os abaixo deles são os que resolvem, que executam, que criam. E estes não são lembrados.
Por dar lugar na história do automobilismo a um mecânico bruto e endividado, mas de brio e especialmente talentoso, Ford vs. Ferrari ganha fácil mesmo aquele espectador que não tem nenhuma relação afetiva com carros ou corridas. Por mostrar os bastidores revanchista da Ford contra a Ferarri, que investiu US$ 9 milhões (dos anos 1960!) para criar um carro totalmente novo, o Ford GT40 (o “Matador de Ferraris”), liderando o Le Mans por quatro anos, o filme de Mangold pode se tornar fácil referência aos amantes do tema.
Roteirizado a seis mãos por Jason Keller e os irmãos Jez e John-Henry Butterworth, o longa-metragem deixa claro com muita precisão não apenas o porquê de Ken amar os carros e corridas. O filme também empresta a sensação de estar pilotando um carro a mais de 300 km/h.
E, talvez, uma das sequências mais significativas está naquela em que o durão Henry Ford II é levado por Carroll para dar uma volta no “Matador de Ferrari”. É a partir dessa experiência transformadora, sem nenhum argumento verbal (mas belamente cinematografada e editada), que Carroll convence o chefão de que apenas um homem (Ken) pode pilotar o GT40 no Le Mans.
Mangold dá espaços para as alegrias e dores de seus personagens. Isso é tão valioso num filme de ação quanto as próprias cenas de ação. Se duvidam, atentem para o momento solitário de Ken, prestes a encontrar a glória ao mesmo tempo em que vive um conflito por uma decisão pessoal e silenciosa enquanto dirige o GT40. É cinema.
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