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Festivais

Viennale (2019) – Duas obras primas

A primazia da forma em função do sentimento, em Costa; e a simplicidade desconcertante em Suleiman.

Por Marcelo Ikeda | 21.11.2019 (quinta-feira)

É praticamente impossível para uma única pessoa cobrir uma mostra de 300 filmes que são exibidos em seis salas de cinema simultaneamente durante duas semanas. Assim, o que posso fazer é lançar algumas notas sobre alguns dos filmes que pude acompanhar durante a programação, tendo assistido três ou quatro filmes por dia.

Dois dos filmes foram destaques absolutos para mim por sua excelência. Vitalina Varela , de Pedro Costa e It must be heaven [foto acima], de Elia Suleiman.

Vitalina Varela, de Pedro Costa – É incrível perceber o caminho de aperfeiçoamento na imensa trajetória do cineasta português Pedro Costa. A partir do irremediável No quarto de vanda , em 2000, Costa encontrou uma assinatura inconfundível no cinema contemporâneo, em que funde documentário e ficção para lidar com as vidas dos imigrantes cabo-verdianos em Portugal. No quarto de vanda , um dos mais importantes filmes dos últimos vinte anos, e que deixou marcas profundas também no jovem cinema brasileiro de garagem, é um filme extremamente corajoso, porque Costa abandonou seu antigo modelo de produção para se debruçar, praticamente ele e uma câmera, nos corredores e esguios aposentos das casas de Fontainhas. Ao mesmo tempo em que prosseguia essa linha anterior, Juventude em marcha propunha uma guinada em outra direção. O rigor do enquadramento, movimentos e posição de câmera inseria uma rebuscada perspectiva formal. Não é que No quarto de vanda também não o fosse uma experiência visual sofisticada, mas em Juventude em marcha esse rigor assumia uma proporção quase épica.

Vitalina Varela prossegue essa mesma ambição épica ao observar a vida desses imigrantes cabo-verdianos. No entanto, com um trabalho ainda mais preciso e radical. O trabalho de corpo e voz dos personagens assume uma grande presença cênica. Os tempos alargados, em gestos profundamente marcados, distanciam o filme do naturalismo, apesar de ser filmado com as pessoas e as coisas daquele lugar. A iluminação também reforça um tom claramente antinaturalista. Há um tom cerimonioso mesmo quando se falam de coisas aparentemente banais. Ou ainda, um certo tom ritualístico, nos tempos, nas pausas e nos gestos.

O filme é sobre essa mulher Vitalina Varela, que retorna a Portugal para ver o marido, mas chega tarde demais, depois de sua morte. O filme é, portanto, sobre o luto dessa mulher, seu tempo de espera nesse país que nunca foi o dela. Essa sensação de estrangeiro e de solidão. Essa busca por conforto (em vão).

Vitalina Varela é o mais “Tourneuriano” dos filmes de Pedro Costa. Como Costa já se declarou grande admirador desse diretor norte-americano, sinto que o filme ecoa especialmente dois filmes de Tourneur: I walked with a zombie e Stars in my crown. Do primeiro, Costa evoca o tom misterioso e ritualístico – um filme soturno sobre se apaixonar pelo desconhecido – e pelo destino como eixo que atravessa o corpo desses personagens em transe. O transe pode ser uma boa chave para adentrarmos esse filme de Costa – uma experiência menos narrativa e quase hipnótica. Já de Stars in my crown penso na reflexão sobre o conflito entre o terreno e o sagrado, especialmente na crise do pastor representada pelo grande Ventura. Por mais que o intangível e o sagrado sejam cada vez mais presentes no cinema de Pedro Costa, há também a consciência de que as coisas precisam ser resolvidas neste nosso mundo mesmo, um desejo de materialismo.

Costa é sem dúvida o maior herdeiro do cinema de Straub-Huillet. Herdeiro tanto no sentido do que o cinema político pode (fugindo das cartilhas que representam os pobres como meras vítimas miseráveis) como especialmente em propor uma forma de encenar em que o gesto (corpo e voz) de personagens comuns seja ressignificado pela dimensão artística do mito.

Às vezes também nos perguntamos se Costa anda se repetindo, ou se ele está indo longe demais. Há em alguns pontos de Vitalina… uma certa tendência ao formalismo. É possível que nos perguntemos se ele não está a exigir demais de todas aquelas pessoas. De qualquer forma, Vitalina Varela talvez seja a mais bem-acabada proposição do cinema de Pedro Costa, até esse momento.

“Vitalina Varela”, de Pedro Costa

E para os que podem achar que o ranzinza Costa está começando a se repetir, somos surpreendidos pelo final. Que final! Um momento em que as cinzas e o tom noturno do filme cedem espaço para o céu. O céu abre uma nova perspectiva no cinema de Pedro Costa. Uma casa a ser construída por um jovem casal – me lembrei não sei porque do final de Baronesa, de Juliana Antunes – um filme que guarda certa herança do “método Costa”. É muito bonito que, logo após mais uma morte, Costa abra uma janela impensável para o seu cinema – uma janela para a luz natural, para a reconstrução das coisas, para a vida que se percebe para além de seu jogo interno de cartas muito bem marcadas.

It must be heaven, de Elia Suleiman – O outro lado do cerimonioso Vitalina Varela é o leve e bem-humorado It must be heaven, de Elia Suleiman. Este é um filme simplesmente desconcertante e quase inacreditável. Ao longo de sua filmografia, o palestino Suleiman vem aperfeiçoando o seu cinema curiosamente o levando para uma espécie de paroxismo, em que um gosto pelo minimalismo cênico é combinado com sequências quase surrealistas, que o tornam um trabalho de composição quase inimaginável. Tento me explicar melhor.

O próprio Elia Suleiman faz um personagem que viaja pela Europa para conseguir financiamento para seu próximo filme. Este é o primeiro ponto que nos surpreende: sempre ligado a uma reflexão sobre o que é ser palestino – essa nação sem um território, eternamente em conflito, Suleiman agora sai da Palestina, mas a Palestina permanece dentro dele. It must be heaven é o antípoda de Lá Bas , de Chantal Akerman, em que ela vai a Israel mas não consegue sair de dentro do quarto do hotel, e olha o mundo trancafiada pelas frestas da janela. Suleiman viaja ao redor do mundo (Paris, Nova Iorque) mas o mundo visível é um prolongamento em alguma medida até mesmo esdrúxulo do seu próprio olhar interior. A paisagem é o modo como se veem as coisas.

Num primeiro olhar mais imediato, It must be heaven é um filme cômico, inspirado nos grandes comediógrafos do cinema com certa inspiração no cinema mudo, como Buster Keaton, Charles Chaplin e até mesmo Jacques Tati. O filme é composto de pequenas esquetes sobre os absurdos que o diretor presencia nesses lugares. O filme não possui propriamente uma narrativa mas um desfile de gags visuais. O diretor vê e participa das situações mas sempre com uma certa distância e não ri – tal como Keaton. Permanece impassível – às vezes sem ação, às vezes desconcertado – frente ao desfile de insanidades da sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo, um enorme sentido de poesia e de beleza invade a tela – um olhar crítico, mas carinhoso, nunca raivoso sobre nossas contradições. O riso é catártico e, ao mesmo tempo, subversivo. Ver It must be heaven é uma das experiências mais saborosas e ao mesmo tempo mais libertárias dos últimos tempos.

A execução do filme vale uma análise a parte. O rigor, a precisão milimétrica do jogo de composições, ainda que articulados a um certo minimalismo, o tornam quase um experimento formal cinematográfico. A graça do jogo que Suleiman propõe está na combinação entre os enormes tempos vazios e a suposta falta de reação dos personagens com alguns dos movimentos precisos que o filme propõe. Em algumas cenas, por exemplo, os movimentos são tão coreografados que se aproximam de uma dança – como os policiais em veículos de duas rodas. A dança e a precisão dos movimentos são complementados com alguns efeitos visuais em computação gráfica (marca do cinema de Suleiman), afastando o filme do puro realismo.

Indo de país em país em busca de financiamento para seu novo projeto nos mais ricos centros (Paris e Nova Iorque), a política de It must be heaven pode ser pensada no caminhar desse personagem solitário em busca de um lar. Suleiman reflete sobre os efeitos da globalização mas sabe que sempre será um palestino. Filmado no exílio, depois de dez anos sem filmar, It must be heaven é um filme sobre a Palestina, tanto quanto seus filmes anteriores.

Ao mesmo tempo, por trás do verniz da comédia, existe uma profunda e complexa análise sobre a sociedade contemporânea, e como ela contribui para uma enorme solidão. A solidão do protagonista é avassaladora. A política de It must be heaven escapa totalmente aos manuais de panfleto mas ela está lá absolutamente visível em primeiro plano. No entanto, a inesperada poesia e humanismo de sua refinada e precisa mise en scène tornam It must be heaven uma combinação inacreditável entre o lirismo de Chaplin e o surrealismo de Keaton, com o rigor formal e a crítica à sociedade contemporânea de um Playtime, de Jacques Tati.

It must be heaven é um dos filmes mais espantosos que já vi numa sala de cinema. Ao mesmo tempo, o final é de uma triste beleza poucas vezes vista.

Elia Suleiman em “It must be heaven”

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