Viennale (2019) – mostra “O partigiano!”
Ikeda analisa quatro clássicos realmente raros da mostra que confronta o fascismo ao longo da história
Por Luiz Joaquim | 16.11.2019 (sábado)
– acima, cena de Kozara
O Festival Internacional de Cinema de Viena – a Viennale – também conta com diversas programações especiais. Houve homenagens e retrospectivas de alguns cineastas, como Angela Schanelec e Cecilia Mangini.
O destaque, no entanto, foi para a mostra O partigiano!, com filmes de diversos países que tratam do tema da resistência contra as tropas fascistas, realizados a partir dos anos 1940. São filmes abertamente políticos, que mostram o esforço de guerra – não raras vezes com a formação de guerrilhas contra as tropas nazifascistas.
É bastante interessante presenciarmos essa mostra, composta de filmes raríssimos, pouco conhecidos, todos exibidos em cópias restauradas em 35mm, com legendas em inglês, sendo realizada justamente na Áustria, um dos berços das forças nazifascistas. Ou seja, essa mostra, que reflete sobre como o cinema expressou os esforços de guerra das tropas de resistência, não está sendo organizada na Venezuela ou em Cuba, mas simplesmente em Viena!
Pude assistir a quatro filmes dessa mostra, realizados em torno da década de 1960.
KOZARA [lançado no Brasil com Kozara: A montanha heroica – nota do editor], filme iugoslavo de 1962, dirigido por Veljko Bujalic, parece quase ser um instrumento de propaganda do regime comunista contra a invasão fascista. É um filme de grande produção, com dezenas de figurantes, gruas e muita movimentação cênica com uma gramática eminentemente clássica. O filme busca mostrar a mobilização de camponeses – ou seja, de pessoas não treinadas para a guerra – para resistir à invasão dos cruéis e sanguinários nazistas que irão matar a todos que virem em sua frente. É um filme mais convencional em sua estrutura narrativa, de composição de personagens e de mise em scène, mas, ao mesmo tempo, é notável o esforço em construir essa mensagem patriótica expressa por meio de um cinema de ação, com grande estrutura logística para sua realização. A cidade de Kozara é cercada pelos nazistas, e será muito difícil resistir. Talvez o que sobreviva desse filme seja menos sua arquitetura clássica e seu esforço de produção mas pequenos momentos avulsos em que a habilidade de Bujalic se faz presente: um soldado socorrendo o filho escondido numa pequena caverna, uma cena de amor de um casal jovem no meio do bosque – momentos em que o filme escapa do monumental ou do didático e atingem discretamente uma experiência humana sensível por trás do esforço totalizante da guerra.
KAD CUJES ZVONA (Quando se ouvem os sinos), outro filme iugoslavo (onde hoje é a Croácia) de 1969, de Antun Vrdoljak. Este filme também trata de como uma comunidade no interior da então Iugoslávia se organiza para resistir à invasão nazista, mas trata o tema com mais complexidade. O filme mostra os conflitos éticos entre o líder do exército local (Gara) com um policial vindo de Zagreb que atua como juiz (Vijeko). A cidade local está partida em duas, sofrendo um processo de retaliação. Vijeko tenta mostrar a Gara que é preciso pacificar essas duas cidades para que o processo de resistência contra os nazistas seja mais frutífero. As picuinhas locais acabam por desmobilizar o esforço de guerra. O filme desenvolve esse tema por meio de um notável estudo de composição de personagens. Vijeko captura um soldado que mora na “vila de baixo”, mas não o condena a morte, como é o costume local, mas o transforma em prisioneiro, fazendo-o conviver com a sociedade local. Desse modo, o filme de Vrdoljak rompe os dualismos esquemáticos, inserindo mais camadas de cinza, e especialmente investindo na diplomacia e no humanismo como armas contra a guerra. O filme é um belíssimo conto moral sobre a justiça e a amizade mesmo nos tempos de guerra.
Se nos dois filmes iugoslavos, o inimigo está bem definido e se tratam de filmes clássicos sobre a resistência e a virtude como parábolas humanistas, o eslovaco Zvony pre bosych (Os sinos soam para os descalços), de Stanislav Barabas (1965) está bastante distante das narrativas realistas de heroísmo dos filmes desse período. Dois oficiais partisanos se veem perdidos de suas tropas e encontram um jovem soldado alemão de 16 anos, que usam como prisioneiro. Grande parte do filme se concentra em planos fechados em meio à caverna onde eles se escondem, em meio a uma paisagem coberta de neve – quase como uma extensão do estado interior dos personagens. Nessa economia de recursos cênicos, o filme desenvolve as contradições morais entre os personagens. Os partisanos se revelam completamente perdidos e sem o heroísmo de seus papeis militares, expressando suas condições humana a partir de suas dúvidas, incertezas, receios e fragilidades. O filme, então, se aproxima da experiência do cinema moderno, pela intensa fragmentação psicológica dos personagens, pela falta de sentido não só da guerra, mas da própria vida. Naquela caverna, em condições mínimas, os três personagens tornam-se amigos – alemães e croatas. Ainda que a narrativa não consiga se sustentar plenamente até o final do filme – especialmente após a chegada de um quarto personagem, uma mulher que é usada provisoriamente como prisioneira, o filme de Barabas é profundamente interessante e corajoso como contraponto às narrativas heroicas do cinema da resistência, apontando para uma narrativa filosófica e psicológica sobre o absurdo da guerra e da condição humana, quase aos moldes dos contos de um Strindberg.
O último filme analisado aqui é o interessantíssimo e surpreendente Corbari, do italiano Valentino Orsini, de 1970. O filme é baseado em fatos reais, a de Silvio Corbari, que montou um exército próprio para lutar contra a invasão fascista na Itália, mas em separado das tropas oficiais italianas. Com apenas 22 anos, Corbari liderou um movimento de formação de um exército de operários e camponeses e conseguiu ocupar a cidade de Faenza, onde proclamou um governo próprio e livre. Corbari (o filme) é, portanto, um retrato da resistência mas a partir de um projeto de utopia – um jovem revolucionário que queria não apenas matar os alemães mas conferir vida digna aos pobres trabalhadores italianos. Essa combinação de juventude, ousadia e utopia conferem ao filme um vigor extremamente comovente, mas ao mesmo tempo Orsini possui a sabedoria de contrabalançar a extrema simpatia e sedução de seu protagonista, brilhantemente defendido por Giuliano Gemma, com uma certa ingenuidade e até mesmo uma vaidade egocêntrica desse líder.
A guerra não é vencida apenas com sonhos e desejos, mas também envolve uma articulação política e bélica. A falta de estratégica de Corbari acarreta numa tragédia e numa intensa solidão – sua consciência de que deve lutar sozinho, com poucos, até o fim. A direção de Orsini embala o filme numa ágil narrativa de ação, nitidamente clássica, baseada em personagens de direta identificação, mas, ao mesmo tempo foge do esquematismo dos filmes políticos do período, e o embala numa narrativa agradável para o grande público. É também belo cinema, pela maturidade dos elementos de linguagem, utilizados de maneira simples, mas absolutamente criativas e efetivas. Ah, e percebemos que não se pode fazer um filme sobre a guerra sem se falar de um sonho, de uma utopia – aqui também por meio de um amor (o amor de Corsini por Isis) e também pela extraordinária trilha sonora de Benedetto Ghiglia.
Para Orsini, a resistência ao fascismo deve ser pela luta armada, por meio de ações terroristas. Orsini desvela que as forças nazistas são apoiadas pela grande elite empresarial e pela mídia. Os jornais mentem a respeito das tropas de Corbari e até dizem que ele está morto. Corbari então resolve fazer ações terroristas matando empresários e donos de jornal. Dessa forma, o diretor Orsini aponta para o jogo de poder que dá sustentação à estratégia militar.
Corbari utiliza elementos narrativos e dramatúrgicos para tornar a trajetória de um terrorista mais agradável para o grande público, mas o faz de uma forma nada esquemática, tornando o personagem complexo, revelando o desejo por uma utopia mas ao mesmo tempo seus limites, e embalando esse projeto com um notável sentimento de cinema, com grande vigor a agilidade, ou seja, uma estética viva extremamente adequada para acompanhar esse líder de grande energia visceral. Ao mesmo tempo, esse filme de ação se revela um grande melodrama, com participação fundamental da extraordinária trilha sonora, tornando-o também um filme de enorme impacto emocional.
Confesso que não tinha informações prévias sobre esse filme interessantíssimo e profundamente atual. Gostaria muito de compará-lo ao brasileiro Marighella…
A mostra O partigiano! é composta de quase vinte filmes. Nos quatro que pude assistir, nas sessões de 11h30 da manhã no Filmmuseum, já pude constatar um riquíssimo panorama de possibilidades como o cinema pode abordar a experiência da guerra, em termos estéticos, éticos e sobretudo humanos.
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