Viennale (2019) – Programação brasileira
Marcelo Ikeda comenta a seleção brasileira e faz preciosa análise sobre ‘Sete anos em maio’
Por Luiz Joaquim | 15.11.2019 (sexta-feira)
– acima, em foto divulgação da Viennale, o Q & A com Affonso Uchoa
O Festival Internacional de Cinema de Viena – Viennale – 2019 contou com uma mostra especial sobre a cinematografia brasileira, chamada Brazil burning (O Brasil em chamas), com curadoria do brasileiro Gustavo Beck e do argentino Roger Koza. Koza conhece bastante o cinema brasileiro contemporâneo, tendo participado de várias edições da Mostra de Tiradentes.
O ponto de partida da mostra é refletir sobre como a linguagem cinematográfica tem reagido aos atuais momentos políticos da sociedade brasileira, em que o Brasil “pega fogo”. No entanto, o que considero mais curioso e interessante dessa curadoria é que, para refletir sobre o momento atual brasileiro, os curadores não selecionaram apenas filmes dos últimos dois anos, mas fizeram dialogar essa produção recente com uma anterior tradição do cinema político brasileiro.
Assim, filmes contemporâneos bastante potentes como Sol alegria (Tavinho Teixeira), Era uma vez Brasília (Adirley Queirós) ou Jovens infelizes ou um homem que grita não é um urso que dança (Thiago Mendonça) são exibidos no mesmo programa que filmes como ABC da greve (Leon Hirszman), A opção ou as rosas da estrada (Ozualdo Candeias) e Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho). Dessa forma, a retrospectiva propõe um ousado entrecruzamento temporal entre filmes brasileiros bastante distintos mas que se aproximam num gesto de pensar pontes possíveis entre a estética e a política.
Boa parte dessa retrospectiva foi exibida na Eric Pleskow Saal no Metro Kinokulturhaus. No entanto, alguns filmes ganharam espaço em salas maiores, como é o caso de Chão (Camila Freitas) e A vizinhança do tigre (Affonso Uchoa), exibidos no Stadkino. Como já dissemos, Madame Satã, de Karim Ainouz, fo exibido na prestigiada Gartenbaukino.
Além da sessão Brazil burning, o cinema brasileiro contou com outros títulos espalhados na programação da Viennale. Além de Bacurau, Divino amor e A vida invisível, exibidos na Gartenbaukino, Sete anos em maio, média-metragem de Affonso Uchoa também foi exibido no Metro.
A presença de uma sessão especial na Viennale (Brazil burning) com 18 sessões, incluindo curtas e longas brasileiros de diferentes períodos, sinaliza o contínuo interesse na filmografia brasileira nos festivais de cinema europeus, comprovando uma fase bastante fértil de nosso cinema.
Sete anos em maio – Considero que, nesse espaço, não faria tanto sentido fazer uma maior análise para o que este panorama aponta. Diversos filmes brasileiros aqui exibidos já foram analisados anteriormente em outros contextos. Quanto aos filmes espalhados na Mostra, eu mesmo já escrevi textos recentes sobre Bacurau e Divino amor.
Quanto à sessão especial, o recorte proposto por Koza e Beck, quando analisamos os filmes mais recentes selecionados, aponta para uma cartografia de um cinema brasileiro de jovens autores mais arriscados, como Affonso Uchoa, Adirley Queirós, Thiago Mendonça e Tavinho Teixeira – quatro diretores cujos primeiros filmes foram revelados na Mostra de Tiradentes.
Destes filmes, gostaria, no entanto, de me aprofundar em apenas um deles, o ainda pouco visto Sete anos em maio, de Affonso Uchoa, um dos mais bem-sucedidos filmes brasileiros que vi nos últimos tempos.
Sete anos em maio comprova o caminho de amadurecimento da filmografia de Affonso Uchoa. Sete anos em maio, assim como A vizinhança do tigre, busca uma proposta de cinema político ao acompanhar as vidas de jovens atingidos pela violência e pela injustiça em Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte.
O filme se divide em três partes: uma parte que eu diria central (a entrevista/diálogo), um prólogo e um epílogo.
O prólogo e o epílogo resgatam uma ideia de A vizinhança… – a de que a brutal violência do real pode ser subvertida pelo cinema transformando-a numa espécie de jogo. O jogo, uma brincadeira, no sentido benjaminiano – assim como a arte, o próprio cinema – é uma forma de sobrevivência, de encenar como lúdico aquilo que poderia apontar para a morte. O jogo é uma forma de permanecer viva a inocência da infância mesmo diante do desmoronamento. Na primeira parte, Rafael e seus amigos reencenam um duro relato que aconteceu com Rafael, mas como se fosse uma brincadeira entre meninos, um jogo de polícia-e-ladrão.
O epílogo – desconcertante – retoma essa proposta, ao encenar um jogo de vivo-ou-morto, em que um policial é o dono da voz, e os meninos da periferia tentam sobreviver ao jogo. A duração (o jogo dura) e os movimentos dos corpos garantem uma dura materialidade que dá concretude a esse misto de violência e ingenuidade.
O bloco central é um longo monólogo de Rafael dos Santos, relatando um caso bárbaro de violência policial que transformou sua vida. Ele nunca se recuperou e talvez nunca se recupere desse choque.
O monólogo é visto num longo plano de câmera fixa, numa noite em torno da fogueira – esse fogo que arde no meio da noite fria, diante da precisa e linda fotografia de Lucas Barbi. É impressionante como Rafael dá esse depoimento – “quase” como um ator. A ênfase aqui está no “quase”: não chega a ser um depoimento como nos documentários tradicionais – ele narra a sua própria história, como uma narrativa.
É impressionante a singeleza da mise en scène encontrada por Affonso para dar corpo a um sentimento tão íntimo e difícil de ser revelado para uma câmera. Rafael, no entanto, não demonstra raiva: seu timbre de voz assume um tom grave, pausado e reflexivo, como se ele estivesse num outro momento, já amadurecido após todo o acontecimento.
Não há, portanto, melodrama – não há choro, lágrimas, catarse. O movimento de Affonso se dá numa direção contrária à espetacularização da violência ou da mera vitimização dos oprimidos, como vemos, por exemplo, nas reportagens televisivas. O tom seco e sóbrio do relato aproxima o filme de um Wang Bing, de He Fengming (2007).
Grande parte do mérito do filme é de deixar Rafael falar, de abrir espaço para a possibilidade do relato, mas entendendo que o relato realmente terá potência a partir do momento que se transforma com a presença de uma câmera, ou seja, incorporando o relato às características da gramática cinematográfica.
O relato ganha potência cinematográfica, mas não porque é embalado belamente pelos artifícios da fotografia ou de uma câmera complacente, mas porque a gramática do cinema permite que o relato possa extrapolar sua própria essência e se ver transformado numa narrativa coletiva, ou seja, parte de um próprio processo interior de Rafael em se perceber como parte desse sistema desigual e ainda assim sobreviver a ele, mantendo sua humanidade.
Mas quase ao fim do relato há algo que o transforma. A câmera fixa corta para um contraplano e percebemos que na verdade ele não faz o relato somente para a câmera mas na verdade, ele está a conversar com um amigo, Wederson (Neguim) – um dos meninos de A vizinhança do tigre, agora anos mais velho.
Quando Rafael conversa com Neguim – e não somente dá uma “entrevista” para a câmera – percebemos essa dobra ambígua entre a ficção e o documentário num dos recursos gramaticais mais simples do cinema (um campo-contracampo). Mas percebemos mais do que isso: Rafael não é uma exceção, um caso fortuito, mas um exemplo de inúmeras mutilações e violências provocadas pelo Estado policial.
Wederson também é uma das vítimas desse estado de exceção. Quando Rafael conta essa história para um dos seus, ele, por meio também da arte do cinema (ou, como dissemos, do jogo), tenta se libertar dos seus fantasmas mas também compartilha um sentimento de uma comunidade. Sua história, então, passa da dimensão individual para a coletiva. Trata-se de uma conversa, e não de um mero relato para uma câmera.
É notável como Uchoa articula esses sentimentos sobre uma comunidade atingida pela violência a partir de uma forma de encenar bastante contemporânea, entre o documentário e a ficção, dialogando e avançando em relação a seus trabalhos anteriores. Mas mais ainda me impressiona a maturidade da mise en scène, adotando um tom sóbrio que o aproxima de um certo minimalismo cênico.
Essa sobriedade – que torna a mise en scène de Sete anos em maio bastante diferente do gesto espontâneo de A vizinhança do tigre – me parece aproximar, de formas misteriosas, o cinema de Uchoa com o de Pedro Costa.
É certo que Sete anos em maio não é Vitalina Varela com seu formalismo milimetricamente marcado, mas há algo de muito comum que aproxima os dois filmes: a necessidade de falar do luto e de como a vida prossegue ainda assim, a de como usar a voz e o corpo dos personagens locais, mas de como a gramática do cinema pode tornar essa voz mais forte, ainda que assumindo toda a sua fragilidade.
A incrível intimidade que Uchoa atinge em Sete anos em maio está proporcionalmente relacionada com sua consciência de que é preciso evitar a catarse ou o melodrama, que é preciso não apenas mostrar a dor, mas transformá-la, por meio do cinema, em instrumento de consciência de uma condição social desigual, para que, ainda assim, possamos sobreviver à barbárie.
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