23. Tiradentes (2020) – Canto dos Ossos
Personagens juvenis em íntimo modo de experimentar a existência de sua própria natureza
Por Marcelo Ikeda | 29.01.2020 (quarta-feira)
Canto dos ossos, de Jorge Polo e Petrus de Bairros – Mostra Aurora – É uma incrível coincidência que os dois filmes cearenses exibidos na Mostra Aurora tenham um diálogo tão íntimo. Cantos dos ossos e Cabeça de Nego são dois filmes muito próximos e muito distantes. Ambos partem de uma premissa em comum: investigam, de forma sensível, o universo da juventude da periferia, seus sonhos e suas angústias, sua inadequação diante do mundo, seu desejo de liberdade, de serem como realmente são. Os dois filmes se concentram em ações de estudantes numa escola da periferia de suas cidades.
No entanto, para expressar esse sentimento, os dois filmes optam por estratégias radicalmente diferentes. O filme de Deo Cardoso se insere integralmente na “estrutura de sentimentos” da atual esquerda brasileira, por meio de um ideário político objetivo claro, em que as manifestações dos jovens expressam um desejo de transformação das estruturas sociais a nível macro.
Já Cantos dos ossos opta por expressar esse descontentamento não numa ação política direta, mas o filme prefere mergulhar no imaginário desse conjunto de jovens. O filme não se propõe a expor um panorama claro da situação social e política brasileira. Ele se insere no seu momento contemporâneo – é um filme tão urgente quanto o de Deo, e tão político quanto – de outras formas. Ele prefere adentrar por camadas mais misteriosas, menos objetivas e menos palpáveis. Por isso, enquanto o filme de Deo busca um diálogo mais próprio com o cinema narrativo clássico, tornando-se quase um filme de ação, disposto a se comunicar por meio do uso de uma linguagem mais linear, o filme de Polo e Petrus prefere expressar a comunicar. Prefere mergulhar nesse abismo sombrio junto com os personagens, escapando de sua vocação do real para mergulhar numa espécie de delírio. Se Deo realiza um filme de ação – os personagens tomam consciência de sua condição e agem para reverter o quadro de desigualdades sociais de que são vítimas – no filme de Polo e Petrus os personagens passeiam em deriva sem nenhum projeto programático a não ser viver o presente possível. O diálogo com o cinema fantástico, com um certo clima de cinema de terror, expressa o desejo do filme de mergulhar num imaginário jovem, em como o aspecto sombrio da realidade em que vivem pode ser transfigurado para as convenções narrativas da arte ou da criação. Ou seja, os modos de ser daqueles jovens estão intimamente contaminados não com um processo de transformação das estruturas sociais do mundo, ou de tomar o poder, mas de um contato íntimo ou existencial com as suas próprias naturezas, com seu desejo de vivenciar outra experiência do sensível. O terror do mundo acaba sendo transformado pelo poder da arte em criar outros lugares possíveis em que esses jovens possam habitar. Eles passeiam, portanto, em deriva, num lugar indefinido, entre o mundo em que eles não se inserem e a potência afetiva de seus imaginários. A extrema liberdade com que a dupla de realizadores expressa esse desejo da juventude de “descobrir um novo lugar pra nós”, como já é dito logo na abertura do filme, é comovente.
Vejo Cantos dos ossos como um prolongamento da experiência do coletivo Osso Osso, cujos membros e obras se situam entre o Ceará e o Rio de Janeiro. Jorge Polo é um carioca que viveu muito tempo no Ceará, e Petrus de Bairros é um cearense que viveu muito tempo no Rio. Jorge saiu do Rio para estudar cinema na UFC em Fortaleza, e Petrus saiu do Ceará para fazer cinema na UFF, no Rio. Esses deslocamentos (encontros e desencontros) surpreendentemente geraram um encontro íntimo, curiosamente algo em comum pelas oposições, que fala exatamente sobre essas relações de trânsito, de desvio, de pontos de fuga, que o projeto do Osso Osso e esse filme em particular dialoga. O Osso Osso também fez filmes no interior do Ceará que rompem com os sentidos mais tradicionalistas de representação daqueles modos de ser. Cantos dos ossos deve ser visto, em maior ou menor grau, dialogando com um conjunto de filmes, entre curtas e longas recentes, feitos mais ou menos pelo mesmo grupo, como Corações sangrantes, Antes da encantaria, Carruagem rajante, Buraco negro, Com o terceiro olho na terra da profanação, Tremor-Iê, entre outros processos de intervenção urbana, quadrinhos, performance e tudo o mais.
Talvez essa experiência libertária de uma produção coletiva ressoe algo da experiência do Alumbramento, em Fortaleza. Mas no Osso Osso a fruição é ainda mais selvagem, mais libertária, mais instintiva – mais livre e surpreendente. Talvez por isso mais desigual, mais imperfeita – pois assim também é a vida. Considero a existência desses filmes fascinantemente misteriosos algo muito importante no corpo do atual cinema brasileiro, porque reverberam não apenas um modo de fazer cinema (sem grana, com apoio dos amigos, um total descompromisso com as lógicas pragmáticas de inserção em um meio) mas porque revelam, de forma íntima, os modos de ser de uma juventude que expressa sua inadequação diante do mundo e tenta encontrar seu próprio lugar, mas que manifesta essa insatisfação e esse desejo por meio de códigos mais sutis que os manuais de panfleto ou que as explicações mais causais de quais são os dilemas da juventude no mundo de hoje.
Esses filmes são notáveis porque buscam uma forma cinematográfica própria e original para expressar esse dilema tão jovem que é a sua insatisfação com o mundo e seu desejo de viver a potência de seus imaginários.
Cantos dos ossos, Cabeça de Nego e também Escravos de Jó, de Rosemberg Cariry, são três filmes notáveis que se complementam, cada um à sua maneira, comprovando o fértil momento do cinema cearense, para investigar, de forma sensível, os dilemas da juventude no nosso mundo.
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