23. Tiradentes (2020) – Ensaio sobre o fracasso
Os sonhos, os dilemas e as angústias de um projecionista que deseja fazer um filme
Por Marcelo Ikeda | 31.01.2020 (sexta-feira)
Ensaio sobre o fracasso, de Cristiano Burlan – Sessão debate – A morte, o fracasso parecem ser as matérias-primas do cinema de Burlan. Sua produção prolífica – chegando quase ao seu décimo longa-metragem – transita entre filmes documentários e ficcionais. Entre os temas recorrentes de Burlan, está também o processo de criação, ou então o próprio cinema. Diante do fim, ou das perdas, é preciso continuar, da forma como é possível.
Ensaio sobre o fracasso é mais uma forma de Burlan manter sua filmografia sempre em movimento – não se pode parar. Ao mesmo tempo, como bem expresso na palavra “ensaio”, esse filme funciona como uma espécie de inventário de um método de trabalho de Burlan. Nesse filme, Burlan examina os sonhos, os dilemas e as angústias de um projecionista que deseja fazer um filme.
No entanto, os filmes que ele projeta se confundem com o próprio filme que Burlan está realizando. Eis então o mundo (os cinemas de rua em São Paulo que praticamente não sobrevivem), os filmes (são citados vários filmes, como Documentário (1966), de Rogério Sganzerla), o filme que o projecionista tenta criar e o próprio filme que Burlan realiza. Um pouco aos moldes de filmes como The cameraman (1928), de Buster Keaton, ou A rosa púrpura do cairo (1985), de Woody Allen, Burlan busca embaralhar essas camadas entre o cinema e o mundo, por meio desse protagonista singular – um projecionista.
Exemplo típico é quando Burlan dubla, utilizando o aúdio de filmes, a própria voz de seus personagens. Essa dublagem tosca, que tem um efeito cômico, nos relembra dos próprios filmes brasileiros de décadas atrás, que não usavam som sincrônico. Pois, ao mesmo tempo, Burlan busca inserir um comentário sobre o fim de uma certa cultura cinematográfica popular em São Paulo, que teve seu auge nos anos 1970 e 1980, e se encontra em franca decadência. O discurso do projecionista que deseja se tornar cineasta resgata a aventura do Cinema da Boca, com planos filmados na Rua do Triunfo. Ou ainda, quando vemos Jean-Claude Bernardet e André Gatti conversando sobre antigas salas de cinema no Centro de São Paulo. Esse clima saudosista já se estabelece desde o princípio, com fotos em preto-e-branco de antigas salas de cinema da cidade, seguidas de um plano de Gatti filmando a cidade com uma pequena câmera em super-8.
Por isso, é muito sintomático o uso de trechos de Documentário, de Rogério Sganzerla, que mostra dois amigos circulando entre as ruas de São Paulo, tentando achar algum filme para ver, para passar seu tempo vago, para preencher o ócio. Numa hora, um deles diz, “Cinema está virando uma coisa séria demais!”. Trata-se de uma piada ambígua, pois o projeto (seriíssimo) de cinema de Sganzerla era justamente um cinema antiacadêmico e anti-intelectual, que resgatasse os princípios do cinema moderno mas incorporando-os com elementos tipicamente populares. Enquanto caminham em círculo, os dois amigos do curta de Sganzerla veem o tempo passar e acabam sem fazer nada, a não ser “jogar conversa fora”.
Pois a que fracasso então o título se refere? Talvez o fracasso seja o fato de que o projecionista não consegue transformar o seu amor – seu amor ao cinema – em algo verdadeiramente produtivo, em algo verdadeiramente útil. Ou ainda, o fracasso talvez seja do próprio cinema, nesse processo de decadência, diante de uma cidade cada vez mais utilitarista e pragmática.
Ou talvez o cinema seja uma saída possível para o fracasso da vida. Talvez ao final o projecionista tenha conseguido fazer o seu filme sobre samba – como a cartomante já havia sugerido. Assim como em Amador (2014), Burlan parece procurar uma imagem para ser filmada, como forma de anestesiar uma outra forma de dor. Ensaio sobre o fracasso é sobre esse processo de busca – difuso, parcial e incompleto – que é de fato a própria essência do cinema de Burlan.
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