Roterdã, IFFR (2020) – Fellwechselzeit e SSUG
Dois fortes (e baratos) filmes da Alemanha sobre dois fortes e jovens personagens em suas vidas baratas
Por Luiz Joaquim | 27.01.2020 (segunda-feira)
– acima, cena de Fellwechselzeit
ROTERDÃ (HOL.) – Dois belos filmes alemães de baixíssimo orçamento – dois primeiros filmes realizados com apoio de uma escola de cinema – abordam de forma extremamente sensível os dilemas da juventude e sua inadequação aos modos de ser de sua família. Falam sobre as angústias de filhos únicos que buscam, com muita dificuldade, encontrar o seu próprio lugar no mundo, lidando com sua solidão.
O primeiro deles é Fellwechselzeit, de Sabrina Mertens, cujo título poderia ser traduzido por algo como “tempo de mudança”. Esse título não deixa de ser curioso, pois o filme fala de uma família que parece parada no tempo, de modo que nada parece mudar. O filme acompanha dois tempos (como criança e como jovem) de Stephanie, que vive com sua mãe e seu pai desajustados. Stephanie não sai de casa, por razões que o filme não explicita diretamente. Assim, o filme desenvolve o enclausuramento dessa família por meio de estratégias de encenação bastante expressivas. O filme reflete essa inércia usando planos extremamente alongados de câmera fixa. Com um dos mais expressivos conceitos de direção de arte que vi recentemente, o espaço reflete, por meio de objetos empilhados, abandonados e espalhados desorganizadamente pelos cômodos da casa esse sentimento de desordem, confusão e decadência da família. O afeto se transforma em ressentimento; a intimidade em vigilância; a paz em dor. Stephanie possui prazer sexual em se ferir. Alguns objetos antigos nos aproximam do abate e da morte. Fellwechselzeit é uma exasperante reflexão sobre a inevitabilidade da morte, ou ainda, sobre a impossibilidade da liberdade plena. O rigor da cineasta aponta para uma espécie de fábula que transfigura o cotidiano (ou a tão falada “dramaturgia do comum” contemporânea) numa espécie de ritual fúnebre, em que, de forma progressiva, a diretora vai enterrando, uma por uma, toda a nossa juventude, nossos sonhos e nossa esperança. O tempo, matéria-prima do filme, é aquele motor que vai, pelo cansaço ou pela inércia, consumindo nossos corpos com o peso da desilusão.
Já Sebastian springt über Geländer, primeiro filme de de Ceylan-Alejandro Ataman-Checa, poderia ser traduzido como “Sebastian pula sobre as cercas”. O título é uma declaração de princípios sobre esse menino que tenta encontrar seu lugar no mundo desafiando suas convenções. Para isso, o filme acompanha a vida de seu protagonista em três momentos – quando menino, quando adolescente e quando jovem. Ainda que seja um filme de corte narrativo mais simples, bem menos radical em termos estilísticos que o rigor autocentrado de Fellwechselzeit, o filme surpreende pelo viço, pela curiosidade com que acompanha as decisões de seu personagem – suas dúvidas, seus anseios, sua timidez, suas angústias. Enfim, um filme, ainda que irregular, cheio de coração para tentar viver os desafios de seu personagem, acertando e errando com ele.
Quando menino, Sebastian precisa usar óculos. Os momentos de transição entre os blocos, que marcam passagens de tempo quanto à idade do protagonista, estão entre os momentos mais singelos do filme – todos voltados ao aspecto do olhar (o olhar como uma forma de ser).
Mesmo rodeado de gente, Sebastian parece estar só. Sua mãe, que parece não se importar com o que sente. Os pais de sua possível namorada, que querem que ele seja um outro. Seus supostos amigos, que se afastam dele no meio dos fogos de artifício. O segundo ato do filme possui um desdobramento inesperado, num rompante marcante que considero ser o clímax do filme. Mas nem assim seu reencontro com sua mãe marca uma possibilidade de reconciliação. Mesmo de forma simples, é bonita a forma como o diretor tenta entender os limites de seu protagonista.
Reiterando a ideia de que seja sobre o olhar, o filme possui um final bastante sugestivo. Em sequências anteriores, alguns dos climas já haviam sido sugeridos com uma oscilação entre o âmbar e o azul. Agora, uma luz atinge Sebastian e ele vê algo – ou simplesmente percebe essa luz que incide em seu corpo. A liberdade talvez seja esse gesto de pertencimento de si. Sebastian não transforma os traumas do seu passado em ressentimento, mas tenta viver a vida ainda assim, olhando para frente. É preciso despedir-se de algo para tentar dar um passo adiante, seja como for.
Esses dois filmes me parecem de alguma forma herdeiros indiretos do estilo da Escola de Berlim – o de fazer filmes pequenos, sobre pessoas de não muito brilho, pautados em torno de gestos que parecem, a princípio, não serem de muita valia ou significância. O de transformar a aparente insignificância em motivo cinematográfico, por conseguir olhar de forma humana para os dilemas e desafios de seus personagens. Esse cinema alemão me parece ser uma das coisas mais interessantes que vi aqui em Roterdã.
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