Roterdã, IFFR (2020), The Invitation, Babai
Justiça e injustiça com crianças no foco do IFFR pelo cinema indiano e russo
Por Marcelo Ikeda | 29.01.2020 (quarta-feira)
ROTERDÃ (HOL.) – O convite – (The invitation), de Saurav Rai Índia, 2020, Bright future – O indiano O convite começa aos moldes de um singelo filme iraniano. Num vilarejo do interior rural, uma criança fica fascinada com os preparativos de um casamento, e ajuda a mãe do noivo a entregar os convites para os moradores da vizinhança. Enquanto caminha pelos arredores, o pequeno Tashi, de dez anos, passa por várias aventuras e pequenos desencontros. Lembramos do tom de fábula lírica e ingênua dos filmes do auge do cinema iraniano dos anos 1980/1990, como Onde fica a casa de meu amigo?, de Abbas Kiarostami, ou O balão branco, de Jafar Panahi.
No entanto, esta estrutura aos poucos começa a ruir. Se prestarmos bem atenção, essas “rachaduras” já estão expressas desde o início mas vão se aprofundando. De alguma forma, o cineasta Saurav Rai analisa uma divisão de classes: o menino e sua avó pobres servem aos seus patrões de classe média, mas não são diretamente convidados para o casamento, e ainda são acusados de roubo. O filme, então, vai inserindo outras camadas em relação à sua abordagem ingênua. O jovem casal parece não querer viver ali no vilarejo, e precisam se separar logo depois do casamento. O pai – e também o filho – atiram com suas armas para demonstrar seu poder.
O convite possui um certo tom de exotismo ao retratar o interior indiano. De qualquer forma, o filme possui um tom realista que o diferencia das luxuosas produções de Bollywood. É um outro lado do cinema indiano. A ruptura de tom à medida que o filme prossegue garante um certo interesse, por promover uma análise mais nuançada de camadas sociais da sociedade indiana.
O final, ainda, rompe seu possível tom de fábula moral. Talvez a acusação do roubo possa fazer sentido. Talvez o autoritário “coronel da casa grande” tenha um pouco de razão. Se o menino roubou algo, ele pode ter sido influenciado pela própria avó, que levara para casa uma garrafa de coca-cola escondida. Mas os pobres servos tratados quase como escravos devem ser condenados por ceder à tentação? Devem ser castigados? Ao mesmo tempo, eles têm outra opção a não ser pedir o perdão dos seus patrões? Por trás da suposta leveza de O convite, essas questões permanecem ressoando ao final da projeção.
Babai / de Artem Aisagaliev / Rússia, 2020 / Bright future – Competição – O primeiro filme do jovem diretor russo Artem Aisagaliev aborda os medos e os traumas de duas crianças ao conviverem com o violento mundo dos homens adultos. A rotina dos dois irmãos é guiada pela imposição da força, em que suas regras de conduta são pautadas pelo exercício da disciplina e pela humilhação. Enquanto Mark é mais reativo e expansivo, Gesha é introspectivo e silencioso.
Ainda, o que surpreende em Babai é a forma como o diretor encontrou para expor sua narrativa. Aos moldes de um certo cinema da Europa Oriental, o filme é todo apresentado com uma presença da câmera quase invasiva, muito próxima ao corpo dos personagens, com inúmeras cenas de câmera na mão em planos bastante fechados, com pouquíssima profundidade de campo, de modo que boa parte da ação fica fora de quadro, ou ainda fora de foco, combinados com cortes secos e elipses bruscas. Esses recursos trazem para o filme uma condição precária de urgência que o torna quase um exercício de guerrilha. A violência das situações é, portanto, incorporada à própria materialidade da relação da câmera com os corpos. O espectador se sente desorientado visualmente com imagens e sons que não lhe são agradáveis. A câmera colada aos corpos dos personagens traduz uma certa claustrofobia, um certo asfixiamento. Ainda que o filme possua uma dinâmica interna própria quanto ao movimento dos corpos e ao movimento da câmera, há uma sensação de constante torpor que encurrala o espectador junto com os personagens. Não vemos muito bem o que se passa; os cortes não situam as ações; muitas vezes, a narrativa não progride linearmente para a frente.
Em outros momentos, as próprias crianças são expostas a situações de roteiro que expõem sua humilhação – chegamos a nos questionar quais os artifícios usados pelo diretor para expor os meninos a certas situações. Essa liberdade talvez seja associada ao fato de o diretor ter usado a sua própria família para os papeis principais – tanto dos adultos quanto das crianças.
Talvez o maior interesse de Babai esteja por esse uso asfixiante da câmera, buscando incorporar ao filme um certo interesse cinematográfico. No entanto, com o tempo, o recurso parece repetitivo e insuficiente para aprofundar as premissas dramatúrgicas do filme. Parece mais um artifício formalista para seduzir, inebriar ou impressionar o espectador do que de fato um recurso que contribui para observar de forma mais profunda ou intensa o drama dos dois meninos.
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