23. Tiradentes (2020) – Cabeça de Nego
O racismo como ponto de partida para a mobilização juvenil contra um pais hipocritamente desigual
Por Marcelo Ikeda | 01.02.2020 (sábado)
Cabeça de nego – de Deo Cardoso – Mostra Aurora – O cinema cearense vive uma fase de grande amadurecimento. Talvez não seja exagero dizer que vivemos os melhores anos do cinema realizado no estado. Em 2019, Pacarrete e Greta, dois filmes de diretores estreantes, respectivamente Allan Deberton e Armando Praça, ganharam vasta repercussão pela premiação do primeiro em Gramado e a exibição do segundo na Berlinale (e a premiação no concorridíssimo Cine Ceará). São dois primeiros filmes que possuem uma proposta de um cinema narrativo, de comunicação com o público, mas não se trata de simples passatempos ligeiros como meros produtos comerciais, pois possuem uma nítida expressão pessoal e uma vontade de fazer cinema.
Cabeça de nego, de Deo Cardoso, pode ser incluído nesse rol, como mais um filme de um diretor estreante cearense que “veio para ficar”. Curiosamente, os três são filmes bem diferentes, mas devem ser vistos como parte desse processo de abertura e pluralidade do atual cinema cearense.
Cabeça de nego é um filme de ação. O filme parte de uma premissa diretamente identificada com os dilemas sociais que vivemos hoje no país. O filme de Deo Cardoso utiliza como ponto de partida a questão do racismo para na verdade desenvolver um outro tema – a mobilização social da juventude em torno das manifestações diante de um país hipocritamente desigual.
Desde 2013, viemos acompanhando no Brasil a escalada dos protestos e das manifestações populares. A juventude fez parte ativa desse movimento, sofrendo direta repressão policial. As manifestações abriram o flanco para a expressão dos movimentos sociais ligados às pautas identitárias – mulheres, negros, LGBTs iam para as ruas clamarem por seus direitos de serem reconhecidos e de viverem livremente.
No filme de Deo Cardoso, um jovem estudante negro numa escola da periferia de Fortaleza resolve se insurgir contra o implícito racismo da escola, recusando-se a sair da sala de aula. Ele ocupa a escola e usa a internet (as redes sociais) para expressar as contradições da direção da escola, que a deixa em abandono. No entanto, o gesto solitário de Saulo não se resume ao encapsulamento do mundo virtual. Esse é só um gatilho para o verdadeiro movimento dos estudantes que, mobilizados a partir do exemplo de Saulo, se insurgem contra o sistema escolar – contra as maracutaias do diretor da escola, aliado dos políticos de alto escalão. Os estudantes se organizam e pressionam a direção. A união faz a força.
É por isso que digo que Cabeça de nego é um filme de ação, pois os estudantes não apenas reclamam mas agem para transformar o mundo. O título expressa um trocadilho: ele se refere à questão de cor e ao nosso racismo mas também a um tipo de fogos de artifício, remetendo à própria violência da repressão policial. Algo prestes a explodir, como uma bomba.
A própria estrutura do filme se contamina da indignação do grupo de estudantes e caminha progressivamente para um clímax final, em cena de confronto aberto. É hábil a encenação do estreante Deo Cardoso em movimentar as dezenas de atores, com um senso asfixiante obtido pela precisa montagem de Guto Parente, para criar a dinâmica necessária a esse finale. As imagens documentais entram como forma de projetar a ficção no real, ou ainda, que aquele confronto estudantil representa um movimento de forças cada vez maior não só naquele caso específico mas em toda a realidade brasileira.
A força do filme de Deo Cardoso está justamente em como a direção segura articula o clímax final, apontando para a inevitabilidade do confronto. Se por muitos anos o Brasil seguiu por uma lógica conciliadora, o filme de Deo tem uma conclusão a favor do confronto – o filme acaba num cenário de caos como uma verdadeira guerra civil. Não há conclusões, nem vencedores ou vencidos. Estamos vivendo justamente sob o impacto do front de batalha, ainda em aberto.
Deo reúne um conjunto de elementos que garantem ao filme sua urgência: a juventude, a escola, a política, as manifestações, o racismo. A maioria que sempre foi vista como “minoria” (a periferia, as mulheres, os negros) resolve se insurgir, ocupando a escola. O gesto de Saulo de se trancafiar é prolongado pelo gesto dos estudantes de invadir e ocupar a escola. O uso da internet é complementado pelos encontros de mobilização e pela ação física. É interessante percebermos que a própria estrutura do filme de Deo vai abandonando cada vez mais o seu lado prosaico e vai se entrincheirando, vai cada vez mais, assim como seus personagens, tomando o corpo de um cinema de ação. O filme social vira um filme de ação.
Talvez possamos pensar que o filme, de estrutura narrativa linear, não se aprofunde nas causas nem nas consequências do cenário de transformações políticas e sociais brasileiras. O filme propõe um resumo um tanto esquemático das forças que se confrontam, formando um certo painel da situação com pouca complexidade. No entanto, a forma vibrante como Deo expõe, de forma direta, o sentimento de indignação da juventude preta da periferia – a forma simples, sincera e honesta com que esse drama é encenado – torna Cabeça de nego um filme digno de atenção. Ele está totalmente inserido nas atuais tendências de discussão das “pautas identitárias” do cinema brasileiro, mas, ao mesmo tempo, recusa alguns de seus chavões e abre outros flancos – ao buscar uma linguagem transparente, que, caso consiga o milagre de ser bem distribuído comercialmente nesse nosso mercado cinematográfico tacanho, tem o potencial de atingir justamente o público que sofre essa violência em seu dia a dia, saindo do discurso autorreferencial de sua própria bolha, um dos maiores problemas do cinema brasileiro independente.
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