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Críticas

Dois Irmãos (2020)

Pixar retoma o original (e arriscado) espírito de criar novos mundos, novas fantasias.

Por Felipe Berardo | 05.03.2020 (quinta-feira)

Possivelmente o mais renomado estúdio de animação no mundo, ao lado do estúdio japonês Ghibli, a Pixar aparentava conformar-se com a lógica da indústria cinematográfica americana na última década, tornando prioridade o estabelecimento e continuação de franquias com retornos financeiramente garantidos em contraponto à produção de ideias originais. Algo já discutido criticamente de alguma maneira, mas que se revela mais alarmante ao perceber que dos 11 longas realizados pela empresa na década passada sete são sequências em comparação ao período entre 1995 e 2009 em que realizou dez filmes com uma única sequência.

Esses fatos são particularmente interessantes a serem discutidos atualmente porque parecem guiar as decisões da empresa para esta nova década, visto que os dois novos filmes agendados para o ano de 2020 pela Pixar são produções originais. A primeira dessas a chegar aos cinemas é Dois irmãos (Onward, EUA, 2020), dirigida e corroteirizada por Dan Scanlon de Universidade monstros, que é ambientada num mundo mágico decadente em que magia foi substituída por tecnologia por questões de conveniência e no qual dois irmãos elfos adolescentes embarcam em uma aventura para redescobrir um pouco dessa mágica desaparecida de tempos passados.

Ao relacionar o já citado contexto vivenciado pelo estúdio com o próprio texto do filme parecem ser levantadas promessas quanto ao futuro da Pixar a partir de um anúncio metalinguístico de mudança através do longa-metragem. A aventura proposta aqui pela busca de uma mágica antiga quase extinta que foi substituída por outros artifícios mais fáceis disponibilizados pelo capitalismo descreve tanto a história recente da Pixar quanto a sinopse de seu novo projeto, servindo como ponto temático mais ressonante pela duração de 102 minutos.

Até mesmo a estrutura do roteiro aqui reflete a de clássicos da empresa como Toy story e, particularmente, Procurando Nemo utilizando uma grande jornada com situações e personagens improváveis para extrair blocos de comédia e aventura que trabalham em direção a um todo sem divergir de uma eficiência narrativa bastante funcional. O problema, no entanto, é que, por mais que tente ir na direção certa de seus antepassados, Dois irmãos não executa suas ideias com a mesma força por amarrar-se a um nível superficial e sem maiores detalhes quanto a seu humor e caracterização, o maior exemplo sendo as agressivas fadas motoqueiras que dependem dessa contradição antiquada entre os dois elementos como único ponto importante.

Algumas personagens são mais inspiradas e dialogam bem com o mote principal do filme como a mantícora – uma quimera entre leão, dragão e escorpião – domesticada através do empreendedorismo que utiliza banalmente de sua própria história para adaptar-se aos novos valores levantados pela sociedade, mas que logo após sua breve retomada de consciência também perde bastante interesse por uma falta de ideias subsequentes. Talvez esse potencial e essas ideias não completamente construídas estejam assim porque o real foco do filme está inequivocamente depositado no relacionamento entre os dois irmãos a que o título se refere e ao pai desses. 

A jornada do filme em busca de mágica tem implicações políticas, mas dentro do universo do filme surgem de uma questão emocional do protagonista que busca trazer seu pai falecido de volta à vida por um dia para lidar com os traumas criados pela ausência do pai. Essa é, ainda que baseada na experiência pessoal do diretor, uma das partes menos interessantes do filme exatamente por assumir por tanto tempo o centro da narrativa, de forma que o arco emocional dos personagens tornam-se previsíveis e incapazes de comover fortemente, especialmente quanto ao relacionamento entre os dois irmãos.

O irmão mais velho coadjuvante, extrovertido e despreocupado mesmo sem muitas perspectivas futuras de vida lembra o personagem interpretado por Jack Reynor em Sing street que de sua própria forma tenta ajudar o irmão e o ajuda a crescer, porém sem a composição trágica memorável daquele por não parecer entender como está tentando viver seus próprios sonhos através do caçula. O momento de sobriedade do personagem vem na forma de um segredo traumático relacionado à morte do pai que comove dentro das regras para preparar a redenção final do protagonista através do seu sacrifício pessoal para ajudar seu irmão mais velho a superar esse trauma.

O filme é, mesmo com todos seus problemas, ao menos uma forma por parte da Pixar de mostrar interesse em voltar aos tempos em que suas excelentes produções originais tomavam prioridade em relação a construir franquias e parece ao menos prometer coisas melhores nessa década. Inclusive, também é criada aqui a primeira personagem abertamente gay em filmes de animação Disney como outra forma de mudança, no entanto que a personagem seja uma figurante com apenas uma fala mencionando isso – aparentemente já sendo censurada na Rússia – mostra que talvez guardar muita esperança por mudanças criativas significativas não seja uma aposta tão certa quanto desejado.

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