CinemaEscrito #5: Sobre um dinamarquês
Com quais condimentos o diretor de Dogville prepara seus filmes. A resposta pode estar nas antigas obras.
Por Luiz Joaquim | 23.04.2020 (quinta-feira)
Antes do site CinemaEscrito.com vir ao mundo em maio de 2007, sua identidade existiu por brevíssimas cinco semanas em 2004.
No início daquele ano, o JC Online, do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação (Recife), nos convidou para assinar uma semanal coluna online sobre cinema, na qual teríamos liberdade para definir seu perfil e também batizá-la.
Assim nasceu a coluna ‘Cinema Escrito’, cuja primeira publicação aconteceu em 20 de fevereiro de 2004. Naquele momento, decidimos montar a coluna abrindo com um texto reflexivo sobre aspectos comportamentais, estéticos, técnicos ou do mercado cinematográfico. Atrelado a este texto, algumas notas rápidas e pontuais sobre tópicos circunstancial daquele momento no cinema pelo mundo.
Resgatamos, e estamos publicando, os cinco textos concebidos naquele momento. Aqui abaixo você tem acesso ao quinto e último artigo, mas leia também a publicação #1 (Reflexo que faz tremer), a #2 (Tão ruim que é bom), e a #3 (Problema do século 20), e a #4 (Quando é a temática que grita)
Todos eles, de certa maneira, voltam-se para aspectos atemporais dessa arte, podendo oferecer a mesma força de reflexão que ofereceu há 16 anos. Abaixo, o quinto e último texto.
Semana 5 – 26 de março de 2004
– Sobre um dinamarquês
Sim. Lars von Trier é o autor de um dos filmes mais comentados nos últimos meses. Dogville (Dinamarca, 2003), seu 7º longa-metragem, entrou oficialmente em cartaz no Brasil no dia 16 de janeiro [2004]. Às vésperas de abril, o filme ainda pode ser visto nos cinemas, inclusive no Recife. Mas, por que a produção é tão festejada pela mídia especializada? Deve-se ao selo de qualidade impresso quando lançado em Cannes (apesar da não-obtenção de Palma de Ouro)? Será, talvez, pela pesada carga humana emoldurando o argumento? Ou seu sucesso vem apenas por um equívoco ou desvario coletivo da crítica mundial? Será por tudo (ou por nada) disso? Não nos interessa agora.
Não estamos impelidos, aqui, a julgar a razão do sucesso ou insucesso do filme. Queremos trazer de volta à memória um pouco das antigas realizações do homem por trás de Dogville. Assim, quem sabe, possamos refletir sobre o filme protagonizado por Nicole Kidman enxergando uma possível linha filosófica ou idealista conectando o perturbador conjunto de obras do diretor. Trier dirigiu seu primeiro longa para o cinema, The element of crime (Dinamarca), há exatos 20 anos [1984]. Infelizmente apenas 5 trabalhos antes de Dogville foram comercial e legalmente disponibilizados aos brasileiros (pelo cinema, TV ou home-vídeo).
Entre eles está Europa (Din./Fra../Alem./Sue.1990), seu terceiro longa, ganhou o mundo começando por Cannes (Grande Prêmio do Júri e Prêmio de Contribuição Artística). Ali, Trier já demonstrava força poética em narrar drama humano em formato incomum. A própria abertura do filme, com a voz solene e potente de Max Von Sydow é hipnótica ao público, quando informa que o protagonista (Jean-Marc Barr) iria morrer dali a segundos. Barr interpreta um soldado americano de ascendência alemã que volta a terra de seus ancestrais logo após o final da 2ª Grande Guerra para ajudar na reconstrução do País. Esse ambiente, cercado por zumbis germânicos amargurados e desconfiados, é a cobertura dramática do bolo que Von Trier oferece para quem o quiser experimentar. Mas a montagem, a estratégia estética e a alternância entre P&B e cor de Europa são os recheios que dão um raro sabor aos seus espectadores.
Bem antes de lançar em 1998 o manifesto Dogma95, Von Trier rodou em 16mm The kingdom (Kismet, Din.,1994). São 4 horas e 30 minutos, dentro de um hospital mal assombrado, editadas em quatro episódios para um série na TV – mostrado no Brasil pelo canal pago Eurochannel. Em The kingdom o diretor já aponta o que viria estar presente em futuros trabalhos com significado e significantes explícitos. São exemplos disso: o protagonismo exercido por mulheres em transe absoluto, ou quase absoluto, por uma causa divina ou espiritual; o movimento nervoso de sua câmera; e a luta entre o bem o mal (como Trier, pessoalmente, declara para o seu público em The kingdom).
Em 1996, Ondas do destino (Breaking the Waves) fez o mundo prestar cada vez mais atenção nesse dinamarquês. Mais uma vez as palavras são coadjuvantes e as imagens gritam. O Cinema [‘C’ maiúculo mesmo], em sua essência, é concebido. Emily Watson, atuando pela primeira vez no cinema, vive Bess, uma fervorosa católica na Escócia com seu marido Jan – que trabalha numa plataforma de petróleo. O obsessivo amor de Bess por Jan lhe compele a pedir a Deus que o traga de volta. Jan retorna a casa, mas, paraplégico por conta de um acidente. A partir daí, Trier e Watson nos brindam mostrando o que uma mulher amando abnegadamente seu marido pode fazer para salva-lo, mesmo que isso signifique, em paradoxo, traí-lo e trair a si própria. É fácil sentir a câmera trêmula do diretor sugerindo realismo. A insistência em planos fechados no rosto de Bess também nos aproxima de seus sentimentos. E ainda, a dubiedade que Watson dá às expressões de sua personagem colabora para o espectador perceber o mundo em que ela vive. Em certas situações, por conta de seus diálogos com Deus, não sabemos se o que se sente é medo do Todo Poderoso e do que terá que enfrentar pelos seus desígnios, ou se apenas está verificando seu próprio prestígio com O Criador.
Ondas do destino, como um livro, é apresentado em oito capítulos: O Casamento de Bess; Felicidade; Vivendo sozinha; A doença de Jan; Dúvida; Fé; O Sacrifício de Bess e O Funeral. Talvez esse seja o trabalho mais exato de Trier. Exato não matematicamente mas sim numa cara equalização entre sinceridade humana e autoria cinematográfica. Não há exageros, glamourização ou excessos. Há sim um registro sobre o amor, limpo de indução a julgamento ou culpa. É um registro, digamos, “incoerente” na forma, como o próprio amor pode ser.
Dançando no escuro (Dancer in The Dark, Din./ Sue./Fran., 2000), apesar de ser seu maior sucesso de público, não alcança, a fluidez lúcida de Ondas do destino. Há no filme protagonizado pela pop islandesa Björk uma condução exageradamente confortável (talvez daí seu grande sucesso com o público comum). É como se Trier pegasse na mão do espectador e dissesse: “venha comigo e chore um pouco (ou bastante)”. Acredito que a genialidade (e não devemos cobrar mais que uma genialidade por filme) do dinamarquês nesse drama é justamente tê-lo concebido como um musical, subvertendo assim os dois gêneros cinematográficos.
Antes de Dançando no escuro, Von Trier dirigiu sua contribuição em película para o movimento Dogma95. Os idiotas (Idioterne, Din., 1998) traz uma comunidade alternativa (com destaque para uma personagem feminina, novata que se integra no grupo e o questiona simultaneamente) interessados em confrontar regras sociais a partir de um comportamento débil. Com nudez engraçada e sexo explícito não-engraçado, Os idiotas chama a atenção para as obrigações impostas pela sociedade ditando nossa expressão, sentimento e comportamento. Apesar de bom filme, seu maior atrativo talvez esteja fora dele. Encontra-se nas regras do movimento ao qual está amarrado. Quanto a Dogville, bem… vocês decidem o que ele tem a acrescentar à tão sugestiva produção de Lars Von Trier.
Filmografia:
Lars von Trier (Copenhagen, Dinamarca, 1954)
– The Element of Crime (1984)
– Epidemic (1988)
– Europa (1990)
– The Kingdom (1994) – para a TV
– Ondas do Destino (1996)
– Os Idiotas (1998)
– Dançando no Escuro (2000)
– Dogville (2003)
– Cinco Obstruções – Episódio: O Humano Perfeito (2003)
– Manderlay (2004 – em pré-produção)
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