O Pão Nosso (1934)
O que um filme do ano de 1934 tem a dizer ao ano de 2020?
Por Luiz Joaquim | 10.04.2020 (sexta-feira)
Notícia: Ano 2020. Entre as duas primeiras semanas de março e a primeira de abril, quase 17 milhões de norte-americanos pleiteiam o seguro-desemprego. Isso significa que mais de 10% da força de trabalho dos EUA foi afetada, entre outras crises, com a pandemia provocada pelo novo coronavirus. E isso é apenas o começo.
História: Ano 1929. Em outubro quebra a Bolsa de Valores de Nova Iorque e dá-se o início da chamada Grande Depressão, que se irradiou pelos países industrialmente desenvolvidos. Quatro anos depois, os efeitos ainda eram sentidos. Em 1933, onze mil dos 25 mil bancos norte-americanas estavam falidos. Milhões de pessoas estão desempregadas e sem ter onde morar.
É no ano posterior que King Vidor (1894-1982) – aquele que, como poucos, tão bem transitou do cinema silencioso para o sonoro em Hollywood -, lê um artigo no jornal apontando um caminho possível para os desesperados: resgatar a dignidade pelo trabalho com a terra. Tirar dela o seu alimento e provisões.
Exemplos reais de grupos comunitários surgem – em que todos colaboram e todos se beneficiam -, estimulando o cineasta a escrever um argumento audacioso e preocupante para os estúdios da Metro-Goldwyn-Mayer, com quem Vidor mantinha um contrato.
Naquele período, de ascendente tristeza e miséria nos EUA, Hollywood tratava de criar filmes leves, divertidos. Seguia uma cartilha guiada pelo: “De miséria basta a vida real. Ninguém quer encontrá-la no cinema”. Sob essa limitada égide, o argumento de Vidor não foi aprovado. Certo de que tinha uma ótima história na mão, resolveu ele mesmo produzi-la. Para tanto, teve de hipotecar a casa e empenhar outros valores.
O pão nosso (Our Daily Bread, 1934) não chegou a dar prejuízo, mas também não deu lucro. Deixou, porém, o nome de seu diretor/produtor ainda mais forte na história do cinema. Fortaleceu-se Vidor com essa fábula moderna de “volta por cima” diante de uma das maiores crises da história moderna do mundo.
O ENREDO – Uma entre as milhões de vítimas da Grande Depressão, o advogado desempregado John Sims (Tom Keene) chegou ao ponto de ter de vender o que tinha no pequeno apartamento (provavelmente em Nova Iorque) para poder comprar comida e alimentar a também desempregada esposa Mary (Karen Morley). Apartamento, a propósito, do qual o John e Mary estão para serem despejados dali a dois dias por conta de atrasos do aluguel.
É quando um mais afortunado tio de Mary propõe que o casal vá morar e cuidar de uma de suas fazendas abandonadas, e que só dá prejuízo a ponto de nem o banco aceitá-la como crédito para as dívidas do tio.
Sem nada a perder, e insuflados pela esperança, o casal parte para o interior. Irão tocar uma fazenda sem nem ter ideia da serventia de uma enxada. Uma vez instalados na decrépita residência, sem nenhuma mobília, precisam começar do zero e rapidamente se dão conta que não chegarão muito longe.
Até que John percebe um carro com problemas na estrada ali perto, descobre que é de uma família estrangeira de camponeses em busca de emprego – já que também estava falida. Ele propõe residência aos desconhecidos desde que o ajudem a fazer daquele terreno algo próspero com uma plantação de milho.
Não demora muito e John tem a ideia de atrair outras vítimas da crise, cada um com suas competências, para criar uma comunidade que faça a propriedade do tio de Mary prosperar. Atraídos pela proposta, aparecem por lá barbeiro, violinista, pedreiro, marceneiro, alfaiate, sapateiro, motorista e os mais diversos especialistas que não teriam a menor utilidade numa fazenda.
É a partir desse ponto que O pão nosso reforça a sua beleza e fé no humano, na solidariedade e na capacidade criativa a partir do coletivo. John decide manter os inexperientes miseráveis que vieram buscar ajuda e montar uma espécie de comunidade que espelha uma espécie de microcosmo socialista, ainda que eles rejeitem esse título. O pedreiro ajuda a construir a lareira do marceneiro que, por sua vez, levanta o alicerce de madeira da casa do primeiro. O violinista dá aulas de música ao filho do sapateiro, que conserta o sapato do musicista. E assim a comunidade evolui.
Mas nem tudo são flores, problemas com a lei, pela posse da terra, e com uma seca impiedosa fazem o coletivo duvidar de sua própria força. Há ainda a chegada da uma loira fatal Sally (Barbara Peeper) que incendeia John, distraindo-o de seu foco sobre o grupo e o sobre a própria esposa Mary.
Este é o único deslize no roteiro de Vidor, que parece apenas querer estabelecer aqui, com um drama romântico (dentro de um contexto mais urgente, o da sobrevivência), a fim de agradar um segmento do público na época.
Como solução final – não contra o romance truncado, mas a favor da sobrevivência de todos -, Vidor criar uma sequência que mistura dinamismo, humor, solidariedade, perseverança e fé. Tudo emoldurado por planos e ritmos precisos.
À época (e por que não para hoje?), O pão nosso apresentava uma mensagem tão contagiante e óbvia do ponto de vista de solução social, que chegou a ser usado como ferramenta política na eleição estadual daquele ano na Califórnia, em favor do candidato democrata da ocasião.
86 anos depois, o mundo volta a tremer apenas por imaginar as consequências que ainda não tem capacidade de projetar em sua totalidade, enquanto vive o início de um isolamento social global.
É de se pensar se, quem sabe, em 2025 não estaremos vendo uma refilmagem de O pão nosso, ou algo próximo de uma solução similar dada pelo filme de Vidor para aquilo que o início dessa segunda década do século 21 nem consegue vislumbra de suas janelas de isolamento social.
P.S. – O pão nosso exibiu em cópia digital DCP, com qualidade 2K, no mais recente edição do Festival de Berlim
Veja o filme completo aqui.
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