A Carruagem Fantasma
“Deus, permita que minha alma amadureça antes de recolhê-la”.
Por Luiz Joaquim | 08.05.2020 (sexta-feira)
Você respeita o trabalho de Ingmar Bergman (1918-2007) e de Stanley Kubrick (1928-1999)? Não? Então você tem duas opções: rever as obras destes mestres e continuar a leitura aqui, ou sair dessa página agora e procurar algo que lhe convenha como mais interessante. Isso porque vamos falar de uma obra-prima do cinema mundial, criada há 99 anos, por Victor Sjöström (1879-1960), ou seja, A carruagem fantasma (Körkarlen, Sue., 1921), também conhecida como A carroça fantasma ou O cocheiro.
Revê-la, quase um século depois de seu lançamento, é igualmente perturbador e aterrorizante, o que se revela como o melhor atestado de que estamos tratando de uma obra de arte. O horror é só um dos elementos a ser considerado aqui, uma vez que o enredo considera a danação de seu protagonista, David Holm (vivido pelo próprio Sjöström), no limbo entre a vida e a morte.
O argumento veio de uma obra escrita por Selma Lagerlörf, vencedora do Nobel da literatura em 1909, de quem Sjöström já havia adaptado outros livros para o cinema. David Holm é um bêbado pneumônico que pragueja contra tudo e despreza a vida particularmente por sofrer uma desilusão e ter maltratado aqueles que amava. Com isso, perdeu o pouco que conquistou no passado.
Motivado por um desejo que mescla ódio, reparação e vingança, David estabelece como única meta na vida reencontrar a esposa (Hilda Borgström) que o deixou, levando as duas filhas pequenas, enquanto ele cumpria pena encarcerado. Pelo caminho que traça dali por diante, sempre regado pelo excesso do álcool, o doente até encontra uma boa samaritana. É Edit (Astrid Holm), enfermeira de um recém-inaugurado hospital do Exercício da Salvação que, com a amiga Maria, o abriga na madrugada de uma noite no inverno sueco.
Entretanto, todo esse contexto, e alguns outros, de A carruagem fantasma chegam ao espectador não de forma linear, mas numa arrumação de informações que se sobrepõem umas às outras como flashbacks – muito bem desenhados para aquele 1921, registre-se – de um homem que, literalmente, encara a morte (o cocheiro da carruagem, vivido por Olof As). E é nesse encontro, na tentativa frustrada de adiar o fim de sua vida (ecos de O sétimo selo), que a cocheiro relembra ao condenado à danação sobre o desperdício que foi a sua vida.
O encontro de David com o cocheiro é precedido por uma apresentação tenebrosa ao espectador a respeito da macabra função da criatura, escondida sob um capuz e empunhando uma foice. Ela (a apresentação) vem embalada pela lenda contada pelo próprio David a outros dois mendigos bêbados sentando sobre uma lápide num cemitério, há poucos minutos da meia-noite para o Ano Novo. A lenda conta que o último grande pecador a morrer antes da virada do ano, irá substituir o cocheiro da carruagem fantasma. Aquela que vagueia pelo mundo recolhendo a alma dos mortos por um ano que mais parece uma eternidade uma vez que, para o cocheiro, um só dia equivale a cem anos da vida terrena.
É aqui, já no início do filme, que Victor Sjöström, junto ao seu diretor de fotografia, Julius Jaenzon nos dá um exemplo de maestria pelo que, hoje, podemos chamar de uma simples superposição de imagens para visualmente representar a fantasmagoria da carruagem, com seu cavalo e cocheiro, atravessando portas para coletar a alma de suicidas ou arrastando-se sobre as águas do oceano, para ir buscar, no fundo do mar, o espírito dos afogados.
Dividido em cinco atos, o enredo e a representação de A carruagem fantasma embalam o espectador em, pelo menos, duas angústias (e aí reside sua competência universal e atemporal). Uma delas é humanista; outra, sobrenatural, espiritual (também vinculada aos medos humanos).
A primeira coloca ato e consequência, um diante da outra, na vida desregrada de David. Ainda que o contexto siga por um viés cristão, contra o pecado (e aqui vale dizer que, fosse qual fosse a motivação da danação ou salvação, ela estaria suscetível a contestações das mais variadas fontes religiosas ou filosóficas), ao colocar esse confronto, é pelo reflexo entre a bondade e a maldade que estamos avaliando os valores aqui. Há, portanto, algo de nobre, por ser humano, nesta angústia construída pela história.
Não à toa, o valioso conselho dado pelo antigo cocheiro ao novo condutor da carroça diz respeito a mais importante oração que a humanidade deveria fazer na passagem do ano: “Deus, permita que minha alma amadureça antes de recolhê-la”.
Pela angústia sobrenatural, A carruagem fantasma é nada menos que espetacular uma vez que a dramaturgia de Victor Sjöström privilegia o rosto dos atores (mais ecos bergmanianos aqui). O diretor não tem pressa (ao contrário) quando dedica vários bons segundos na expressão de estupefação ou desolação de seus miseráveis personagens, defendidos por excelentes atores. Todos lutam, desesperadamente, contra a ordem final do cocheiro: “Prisioneiro, abandona tua prisão”.
A competência dramatúrgica aqui, aliada ao primor cinematográfico e à história sombria ajudam a amplificar no espectador o que há de universalmente aflitivo na ideia sobre o que há (ou não há) após o fim da vida.
Na versão em home-video (da “Cult Classic Vídeo”) que circulou pelo Brasil, a trilha sonora sobreposta ao filme silencioso tem um mérito extra (você pode conferi-la ao final desse texto). Ela foi composta em 2007 pela dupla experimental KTL, formada pelo britânico Peter Rehberg e o americano Stephen O’Malley. De partida, no início do filme, e no início de quase todos os atos, uma batida seca e incomodamente ritmada funciona como um prenúncio do que há de soturno e quase insuportável pelo caminho.
As distorções na guitarra de O’Malley, tendo ao fundo as ranhuras eletrônicas de Rehberg promovem uma agonia sonora, mas sem ser invasiva a ponto de nos distrair do que está diante dos nossos olhos. Na verdade, ela faz o que precisa fazer, estimula a ideia do que há de insustentável naquela vida infeliz de David Holm e da sua condenação à danação.
Uma curiosidade: A carruagem fantasma teve como noite de estreia 1º de janeiro de 1921 – ou seja, no dia seguinte que ocorre a lendária maldição contada no filme – em Estolcomo, e foi acompanhado por uma orquestra que tocou uma colagem de música de Max Reger, Ture Rangström e Felix Mendelssohn, entre outros.
Como se não bastasse tanta intensidade, quando A carruagem fantasma foi relançado em home-vídeo em 2011 pela distribuidora Criterion, milhares de crianças digitais tiveram acesso pela primeira vez ao clássico de Sjöström e puderam perceber uma estranha coincidência de situações e planos deste filme com outras de O iluminado (1980), de Kubrick, envolvendo um homem descontrolado, empunhando um machado contra uma porta para alcançar, do outro lado, sua amedrontada esposa que protege sua cria.
Para concluir, a obra de Sjöström não foi apenas uma inspiração para Bergman, o veterano cineasta integrou, como ator, pelo menos duas produções do mais jovem colega conterrâneo. A primeira foi Rumo à alegria (Till Glädje, 1950) e, a segunda, um outro marco cinematográfico sobre o fim e a revisão da vida: Morangos silvestres (Smultronstället, 1957), aqui com Sjöström protagonizando como Isak Borg.
Em seu livro Lanterna mágica (1987), Bergman lembra que, no intervalo das filmagens do segundo filme, todos sentavam ao redor de Sjöström. “Como crianças curiosas, exigíamos que ele contasse sobre os velhos tempos”. Conforme relata, Bergman revela que Sjöström nunca achara que seus filmes eram particularmente importantes. “Ele se concentrava nos erros e implicava com sua falta de habilidade e relaxamento (…) Contou que era muito exigente com as palavras que os atores diriam e que depois apareceriam nas legendas. Os surdos-mudos que liam lábios ficavam irritados quando os textos diziam uma coisa e os atores outras totalmente diferente”.
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