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Críticas

Piedade

Cláudio Assis de volta, afinado com algo que não se mede, e sob a benção de Fernanda Montenegro.

Por Luiz Joaquim | 19.06.2020 (sexta-feira)

Piedade (Bra., 2019) é o quinto longa-metragem de Cláudio Assis. E não é pouca a tentação de fazermos, a partir dele, ilações em torno dos trabalhos pregressos do diretor. Mas, ao invés de gastarmos energia em apontar conexões comuns ao longo de sua filmografia – o que me parece um trabalho fácil, visto que o próprio Assis, explicitamente, se autorreferencia em Piedade -, o mais apropriado talvez seja tentarmos enxergar para onde vai (ou aonde quer chegar) Claudão com seu novo rebento.

Vale dizer que não deixa de ser pretensioso de nossa parte assumir que lugar será esse a partir de uma única perspectiva, e a partir de um único filme. Entretanto, há uma pista concreta na dedicatória encerrando o filme, registrada à Dona Mira, mãe do diretor.

A matriarca que conhecemos pelo enredo do filme é interpretada por uma reconhecida entidade do cinema brasileiro. Cinema, a propósito, anualmente celebrado na data de hoje, 19 de junho. A mesma data em que Piedade estreia por streaming.

A atriz é Fernanda Montenegro e, com ela, sua personagem, Dona Carminha ganha uma natural e gigante dimensão para além das falas que escreveram Claudão, Dillner Gomes e Hilton Lacerda para o roteiro.

Claudão e todos, sem exceção, na produção, na técnica e no elenco do filme entendem essa dimensão. Nesse sentido, planos simples, como a tomada do alto, sobre uma Carminha embaixo do chuveiro cantando melancólica, costura-se ao melhor da própria história do cinema nacional. Amarrando-se a Zulmira, da Fernanda de 55 anos atrás, quando a protagonista de A falecida, pelas mãos de Hirszman, gozava lindamente a liberdade pela água da chuva.

Tendo essa matriarca como epicentro, Piedade segue por duas trilhas entrelaçadas. A descoberta de um segredo de sua família, impulsionada por uma coerção empresarial. No caso, uma petrolífera chamada Petrogreen, determinada a comprar o terreno onde funciona o bar de Carminha por um valor abaixo do mercado.

É bom registrar que estamos na fictícia Praia da Saudade, na pequena cidade de Piedade, região litorânea do nordeste brasileiro.

O executivo interlocutor na negociação é o paulista Aurélio (Matheus Nachtergaele), que recebe categórica negativa do filho de Carminha, Omar Sharif (Irandhir Santos) pela proposta que faz. Aurélio busca alternativas cercando Fátima (Mariana Ruggiero), também filha de Carminha, mas morando distante da família que, inclusive, é quem cuida de seu filho pré-adolescente, Ramsés (Francisco Assis Moraes).

Aurélio ainda cerca Sandro (Cauã Reymond), dono de um cinema pornô que administra ao lado do filho adolescente, Marlon Brando (Gabriel Leone). É um cinema peculiar, de impregnante e constante odor de sexo, incluindo microcabines reservadas onde seus espetadores podem brincar uns com os outros.

O espaço, a propósito, serve à, ao menos, duas autorreferências que mencionamos no início desse texto. Por um travelling aéreo seguindo uma conversa entre Sandro e o filho Marlon, e a imagem aí incluindo no enquadramento a intimidade sexual que acontece nas várias cabines privadas do cinema – tal qual vemos em Texas hotel/Amarelo manga (2003); e no encontro íntimo, e em primeiro plano, entre Sandro e Aurélio no auditório do cinema pornô, com a projeção ao fundo, na tela da sala, da sequência do streaptease de Bela (Dira Paes) em Baixio das bestas (2006).

Em outras palavras, o que temos aqui é uma cena de sexo acontecendo no auditório de um cinema onde é projetado outro filme, com outra cena sexual, acontecendo dentro de outro cinema, sendo ambos os filmes que vemos feitos pelo mesmo diretor.

Há um sentido aqui, de cara, que parece claro sobre como Cláudio Assis resolve o sexo e o cinema na sua vida. É como se ele dissesse que ambos são indissociáveis e igualmente intensos no prazer que proporcionam.

Cláudio Assis apresenta “Piedade” no 52º Festival de Brasília, novembro de 2019, em foto de Thais Mallon

Mas Piedade é, como dissemos, bem mais do que autorreferência cinematográfica. Isso porquê Assis volta a focar a instituição da família, algo sagrado, e de maneira diferente aqui, ainda que seguindo uma trilha iniciada no anterior Big jato (2016).

A pista sobre a importância da família – em particular da figura materna – não reside apenas na presença de Carminha com Omar e Sandro, mas também na de Aurélio, com saudade do cheiro do feijão da avó, e no incômodo que sente com sua mãe castradora.

Como bom punk do cinema, Claudão não deixaria de fora uma cutucada social. E ela aqui reside na incômoda pressão industrial para que a família de Carminha venda o terreno em nome do “progresso”.

Por Piedade chegar após Aquarius (2015), de Kleber Mendonça Filho – sobre outra matriarca (Sônia Braga) que precisar lutar para defender seu terreno contra as investidas de um empreendimento -, o drama de Carminha, e mais principalmente de Omar, soa como um déja vu temático daquilo que o cinema em Pernambuco faz.

Nesse aspecto, uma combinação complementar mais interessante para Piedade estaria em Brasil S/A (2014), de Marcelo Pedroso, pelo qual temos uma tradução em outra variação simbólica do que representa o aborrecimento de Omar no filme de Claudão.

Encerrando por aqui as digressões extrafilme, podemos voltar à Piedade e nos concentrarmos nele para dizer que o mesmo apresenta um Cláudio Assis afinado.  Ainda fiel ao que lhe move em sua arte, só que agora também funcionando numa sintonia mais fina para um outro algo sutil e que não tem tamanho, que é o amor materno.

É só lembrar de uma conversa entre Fátima e Aurélio, em que ela fala de um irmão desaparecido. Fátima remete a Dona Carminha dizendo:

“Não tem um só dia em que mainha não lembre desse menino”.

E escuta de Aurélio: “É porque mainha é mãe, né Fátima”.

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Piedade teve sua primeira exibição pública no 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em novembro de 2019, do qual saiu com três prêmios: melhor direção de arte, melhor ator coadjuvante (Cauã Reymond) e o prêmio especial do júri.

O filme pode ser visto, em caráter de pré-estreia, entre hoje (19) e 22 de junho no Espaço Itaú Play (clique aqui), pela plataforma streaming do Looke. O acesso hoje é gratuito. A partir de amanhã, ao custo de R$ 10. O filme deve exibir nos cinemas ao fim do isolamento social em função da pandemia pelo Covid-19.

 

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