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Críticas

Celebridades (texto 2)

Revisamos, 20 anos depois, a comovente provocação de Woody Allen e ela, cada vez mais, faz mais sentido

Por Luiz Joaquim | 13.07.2020 (segunda-feira)

‘SOCORRO’, em letras colossais, vão sendo escritas com fumaça no céu por um avião na abertura de Celebridades (Celebrity, EUA, 1998), de Woody Allen. Colada a ela, a 5ª sinfonia de Beethoven em Dó menor. A mesma imagem, com a mesma música, encerra o filme. O que vemos entre as duas pontas da história transforma completamente o sentido da mesma imagem.

Não é incomum tal elipse interna sendo proposta pelo cinema. Mas, de um modo geral, essas estratégias narrativas servem mais a uma explicação ao que foi mostrado fora de contexto e não para dar um novo sentido sobre a mesma imagem ao som de uma mesma composição musical.

Se na abertura, a gravidade de Beethoven com aquelas letras se formando no céu sugerem um exagero ou excentricidade cômica, como um artifício cinematográfico em função do capricho de um cineasta que “pretensamente só filme em P&B” e xinga sua estrela (Melanie Griffith) pelas costas enquanto a bajula quando está diante dela, ao final, aquela mesma imagem e melodia se traduzem como um gigantesco e mudo pedido de ajuda anunciado ao mundo, entalado na garganta de um desesperado jornalista de 40 anos, o protagonista Lee (Kenneth Branagh), mergulhado numa vida de superficialidade, confusão profissional e existencial.

Em outras palavras, aquele grito de socorro na tela ganha um sentido tão potente quanto personalizado em sua mensagem. E não é isso o que o bom cinema faz de melhor? Falar a todos como quem fala a um, especificamente? Ou ainda, falar a um como quem fala a todos?

Nesse momento final, assim como Lee, solitário numa sala de cinema lotada, estamos também nós, espectadores diante de Celebridades. Nos relacionando íntima e solitariamente com essa maravilha criada por Allen. O filme que Lee assiste lhe traduz, ou lhe expressa, em uma sequência, toda a sua secreta angústia. E é assim que Celebridades pode bater radicalmente nos vários ‘Lees’ da vida real.

Quantos filmes, você leitor, não teve certeza de que foi feito para você, ou que aquela obra é sobre você, ou que ela diz aquilo que você quer dizer?

Mas a forma não teria a força que tem se Allen não a enxertasse com um conteúdo igualmente inspirado e consistente. Nele, no conteúdo, temos Lee, que desistiu da literatura, após dois fracassados romances, e busca de todas as maneiras, inclusive as comicamente humilhantes, convencer alguma estrela de Hollywood a interpretar um dos personagens do roteiro que escreveu.

É assim com a supermodelo “poliformicamente perversa” (Chalize Theron em seu primeiro personagem de destaque no cinema); é assim com a estrela cujo corpo é fiel ao marido, mas a cabeça não (Griffith); e é assim com a jovem estrela em ascensão, vivendo no limite das drogas e do sexo (Leonardo DiCaprio, aqui imediatamente após o megassucesso Titanic).

 

Paralelo a isso, acompanhamos Robin (Judy Davis). A ex-esposa de Lee está saindo do fundo do poço após a separação e reinventando-se após o encontro com um homem “perfeito” (Joe Mantegna). Robin vai se encontrar na vida exatamente por uma nova profissão, também no ambiente das celebridades. Mas não por elas ou em função delas. Como apresentadora de um programa de tevê, Robin passa a ser admirada pelas celebridades, e não o contrário. É dela a frase que vendeu o filme à época de seu lançamento: “Você conhece uma sociedade por suas celebridades”.

No roteiro, costurado numa estrutura tão bem alinhavada, não vemos apenas celebridades entrando e saindo da vida de Lee. Há também os seus amores, como Nola (Winona Ryder), que chega, some e retorna em sintonia perfeita com a fluência da vida irregular de Lee.

O retorno de Nola, a propósito, é apresentando numa elegância e inteligência cinematográfica como só poucos conseguem representar uma reunião de amigos conversando em torno de uma mesa de bar. Com a mão firme do bergmaniano fotógrafo Sven Nykvist, o trivial corte para o plano e contra-plano seguindo a fala dos donos do diálogo na conversa é colocado de lado. A combinação do que pede o roteiro de Allen e o que nos dá a fotografia de Nykvist é pura aula de cinema.

Num desenho sofisticado, casais formais (Lee e sua companheira do momento, Bonnie [Famke Janssem) estão sentados próximos, lado a lado. Mas os casais apaixonadamente sintonizados (Lee e Nola) estão sentados um diante do outro, só que distanciados por uma mesa entre eles.

Com os diálogos cruzados, entre Lee diante de Nola, e Bonnie diante de David (Hank Azaria), o então namorado de Nola, as falas que escutamos variam conforme a câmera de Nykvist desliza por trás dos personagens, mas concentrando seu foco em Lee ou Nola. É um espetáculo.

Para concluir, vale dizer que rever Celebridades em 2020, tendo, na vida real, Donald Trump como presidente dos Estados Unidos (ele faz um ponta como ele mesmo no filme, anunciando que quer derrubar a Catedral de São Pedro para pôr um arranha-céu no lugar), tem um gosto especial. Na verdade, um gosto de derrota.

Derrota porque, cada vez mais, a ideia de celebridade, como diz no filme a mãe do personagem de Mantegna, nunca esteve tão distante de uma real validade social. Afinal, por que é mesmo que o sobrevivente de um acidente é considerado um herói nacional ou; por que é mesmo que alguém que descarrega diariamente na Internet um discurso embasbacado sobre videogames torna-se o porta voz de um país? Por que?

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