Melinda & Melinda
Woody Allen confronta o drama com a comédia
Por Luiz Joaquim | 24.07.2020 (sexta-feira)
– texto originalmente publicado no caderno Programa da Folha de Pernambuco em 27 de maio de 2005 (sexta-feira)
Não há quem, em algum momento da vida, não tenha lembrado, com humor, de uma situação triste pela qual tenha passado. Melinda & Melinda (idem, EUA, 2004), 35ª longa-metragem de Woody Allen como diretor, fala exatamente dessa capacidade peculiar do ser humano em enxergar por perspectivas diversas uma mesma situação. No caso, Allen vagueia pelo terreno que melhor conhece, as relações amorosas entre casais, para ilustrar o que há de trágico e cômico na vida de Melinda (Radha Mitchel, a esposa de Johnny Depp no filme Em busca da terra do nunca).
Curioso que o filme inicie num jantar no qual Wallace Shawn (do filme Meu jantar com Andre) defenda o homem como um ser essencialmente predisposto ao humor, enquanto seu amigo (o ator Larry Pine) monta seus argumentos afirmando que é pelo drama onde passam os momentos determinantes para o amadurecimento da personalidade de cada um. Para resolver a questão, uma terceira pessoa na mesa propõe que cada um deles descreva como vê a vida de uma mulher chamada Melinda.
A partir daí o que vemos na tela segue pela imaginação dos dois dramaturgos. O ponto de partida é o mesmo: Melinda chega sem avisar num jantar onde a anfritiã, sua amiga de faculdade (Amanda Peet na comédia / Chloë Sevigny no drama) está ansiosa para agradar os convidados. Melinda é uma mulher desquitada e perdeu a guarda dos filhos por um deslize que ela mesma cometeu no matrimônio. Desse ponto, seguimos os passos dos amigos cômicos e dramáticos tentando rearrumar a vida social e amorosa da protagonista.
Quem conhece a obra de Allen enxerga rápido o seu universo aqui. Casais em crise, relações extraconjugais, culpa, depressão, neuroses urbanas, incertezas fatais, paixões descontroladas (perdoem a redundância). A afirmação é correta, mas não diminui nem invalida a beleza singular do novo filme em cartas. Por que?
Porque a sofisticação no repertório piadístico e dramatúrgico é sempre bem-vindo e atual. Uma pena que o repertório não funcione num público mais amplo. Um exemplo de efeitos distintos provocados pelos diálogos aparece nesse filme quando o marido de Peet (Will Ferrell), enciumado, comenta sobre o novo partido de Melinda: “Ele é o Ernest Hemingway da odontologia”. Enquanto para alguns espectadores a frase passa sem efeito, em outros a analogia provoca gargalhadas folgadas.
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