Breve Miragem de Sol
Conheça o taxista Paulo, testemunha e vítima de um mundo em revolução, no novo filme de Eryk Rocha
Por Luiz Joaquim | 30.08.2020 (domingo)
A plataforma GloboPlay e os drive-in Go Dream dão um belo presente aos seus usuários. É a possibilidade de conhecer, a partir de hoje (30), Breve miragem de sol (Bra., 2019), segundo longa-metragem de ficção de Eryk Rocha, que estreia com exclusividade nesses dois ambientes. Segundo longa de um total de oito, em sua maioria documentários.
E não é por outro motivo, que não seja o interesse e a intimidade com a linguagem documental, que tais elementos apareçam com tamanha presença e força atrativa no cinema ficcional de Rocha. Foi assim em sua primeira ficção – Transeunte (2010), leia crítica aqui – e assim o é em Breve miragem… Coisa que percebemos ao conhecermos o cotidiano do protagonista: o motorista de táxi Paulo (Fabrício Boliveira, ótimo).
Mas é a estratégia, na direção, em dosar bem os condimentos próprios do documentário e da ficção que fazem do novo filme algo que o coloca num degrau superior ao trabalho de 2010.
Por exemplo: Logo após suas imagens iniciais – que curiosamente remetem à abertura de dois clássicos brasileiros (Os cafajestes, 1962, e Bang Bang, 1971) -, compreendemos rapidamente a dimensão da tensão própria ao universo profissional desse motorista de táxi alugado.
Paulo transita pela madrugada do Rio de Janeiro e os seus (nossos) primeiros passageiros são quatro jovens que deixam um bar, embriagados, e que não se decidem para onde ir continuar a bagunça da noite. Paulo, negro, de chofer na madrugada para quatro jovens brancos, bêbados e ofensivos já estabelece, por si só, uma atmosfera pesada, cortante naquilo que há de afronta, de uma quase asfixia sobre Paulo, naquele claustrofóbico habitáculo do carro.
Mas o volume alto da tensão aqui não brota apenas do bom roteiro (coassinado por Rocha, Fábio Andrade e Júlia Ariani) e dos ótimos atores – com o Paulo de Boliveira construído com admirável e elegante altivez. É fruto também da bela combinação entre a fotografia precisa do uruguaio Miguel Vassy (de Transeunte) com a montagem fluida de Renato Vallone.
É importante essa abertura de Breve miragem... Mais do que isso. É boa. E por ela, Rocha não deixa dúvida ao seu espectador quando estabelece que o que está em trânsito ali é um filme sob controle. Com propósitos claros, sejam temáticos ou estéticos, e que podemos nos deixar levar por ele. Numa analogia com o profissional Paulo, se ele nos surge como um bom condutor pelas noites violentas do Rio, Rocha é um bom condutor do que há de sutil em contar a vida de um invisível (assim como era a do seu Expedito, em Transeunte).
Vale destacar a óbvia dificuldade em determinar uma variedade grande de bons ângulos e enquadramento dentro de um automóvel. Tal dificuldade (e o êxito no trabalho de Vassy) só aumenta a beleza cinematográfica aqui.
Outro mérito digno de registro, o primeiro terço (ou quarto) de Breve miragem… tem como perspectiva a de Paulo. Quase que inteiramente de dentro do carro para fora, e não o inverso. A opção ajuda o espectador a “entrar” na fadiga e riscos de sua profissão e ressalta a qualidade dramatúrgica em tornar, com parcos diálogos, alguém numa figura por quem passamos rapidamente a alimentar empatia.
Paulo é solitário e sua única motivação é poder rever o filho de dez anos de idade, de quem está afastado, sob tutela da ex-esposa. Um sinal de alívio na vida do motorista surge na figura da passageira Karina (Bárbara Colen). Assim como ele, Karina tem outra profissão igualmente estafante, ajudando as pessoas, e são os dois que enchem a tela, numa das mais belas cenas do filme, fumando um cigarro, sorrindo e leves enquanto seguem a música de Caetano Veloso, Pé do meu samba, na voz de Mart´nália.
Beleza pura e autêntica do Brasil.
Apesar do alívio, Breve miragem… não segue para a tranquilidade. E é intrigante o quanto Eryk Rocha e equipe resolvem o filme, imageticamente, quando descobrimos o quão mais complexa irá se tornar a vida de Paulo ao receber a notícia de que a ex-esposa irá judicializar a partilha do filho. É a confusão e a violência gráfica promovida pela torcida de um time de futebol carioca na saída de um jogo que ilustra o cenário interno do personagem. Um cenário de guerra, desolador. É o cenário de um brasileiro, trabalhador, dilacerado e, ao mesmo tempo, o cenário desolador de uma sociedade, a nossa, em barbárie.
Tristeza pura e autêntica do Brasil.
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