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Festivais

48º Gramado (2020) – Aos Pedaços + Curtas

Uma investigação acima de qualquer racionalidade, por Ruy Guerra

Por Luiz Joaquim | 23.09.2020 (quarta-feira)

– o crítico e apresentador Roger Lerina, no Palácio dos Festivais, conversa com Ruy Guerra e equipe de Aos Pedaços.

Dominique, curta-metragem carioca, de Tatiana Issa e Guto Barra, sobre uma personagem paraense, abriu a competitiva nacional da categoria na noite de ontem (21) do 48º Festival de Cinema de Gramado. A personagem-título é a mais velha das três filhas trans de uma senhora humilde que reside numa ilha na foz do rio Amazonas.

Dominique, a personagem, viveu em São Paulo, prostitui-se, sofreu preconceito pela transexualidade e pela circunstância da prostituição, e tem a eloquência própria dos experientes ao pontuar o quanto há de mudar no mundo para reverter essa hostil realidade social.

Mas Dominique, o filme, parece apaixonado (e com razão) pela mãe da protagonista, ainda que não abra o espaço que ela merece. No pouco dela que apresenta ao espectador é possível entrever uma personagem extremamente interessante em sua particular revolução no reconhecimento e acolhimento das filhas trans.

Não há o que questionar sobre a importância e a urgência de visibilizar personagens como Dominique, mas, no caso dela, ou melhor, no curta-metragem que leva o seu nome, é a sua mãe que parece agregar mais valor para o que dramaticamente o filme tem de melhor a oferecer. E não há aqui, em absoluto, nenhum demérito a Dominique e a sua trajetória de vida. O que há é o mérito da mãe que, apesar da estrutura pré-concebida do curta-metragem, conseguiu iluminá-lo para além da sua original concepção nos poucos instantes em que virou alvo dos realizadores.

Na sequência, outro documentário, Joãosinho da Goméa – O Rei do Candomblé (RJ), de Janaina Oliveira ReFem e Rodrigo Dutra, detalhou numa harmonia de alegria, humor, cor, sonoridade e coreografia a importância de um personagem valioso na cultural carioca, mas esquecido por questões diversas.

O filme resgata um áudio do próprio Joãosinho da Gaméa, relembrando sua trajetória e a sua ascensão e influência social na vida do Rio de Janeiro, furando um universo habitualmente pautado pelo preconceito no que diz respeito às religiões de matriz africana. Por vários recursos, incluindo performances de Átila Bezerra, temos aqui um trabalho feliz em sua diversidade de estratégias visuais para reavivar a altivez daquele que foi chamado pela Rainha Elizabeth de “O rei do Candomblé”.

LONGA BRASILEIRO – Assinado por Ruy Guerra, não poderia ser pequena a expectativa em torno de Aos pedaços, seu mais novo longa-metragem, exibido em competição na noite de ontem no 48º Festival de Gramado.

Cena de “Aos pedaços”

Coroteirizado por Luciana Mazzotti, o trabalho é derivado de um registro literário inconcluso de Guerra chamado Palavras queimadas. Esse, por sua vez, nasceu de uma história que o cineasta escutou em Cuba sobre um nativo casado com duas mulheres. O bígamo mantinha cada uma num endereço diferente, sendo as casas semelhantes na arquitetura, só que separadas por um oceano – uma, em Cuba; outra, nas Ilhas Canárias.

Na adequação para um roteiro cinematográfico, a história real ganhou uma dimensão psicológica dentro de um desenvolvimento policialesco. O homem chama-se Eurico (Emílio de Mello) e não apenas as casas são idênticas, mas também suas mulheres e o nome dessas mulheres: Ana (Simone Spoladore) e Anna (Christiana Ubach).

Tendo uma lagosta como conselheira – e, aqui, o off com a voz de Arnaldo Antunes ecoa para além do aquário do crustáceo -, Eurico ainda se relaciona com seu irmão, um Pastor religioso (ou apenas um de seus alter-egos, vivido por Júlio Adrião), e também com outras infinitas vozes dentro da sua cabeça.

Em que os vários ‘Euricos’ dentro da cabeça dele lhe atentam? Na suspeita de que uma das esposas irá matá-lo.

Posta a premissa, Aos pedaços revela-se um exercício audiovisual de Guerra para construir imagens em movimento representando o que seria a loucura dentro da cabeça de um portador do Transtorno Dissociativo de Identidade, como o diretor explicou em entrevista hoje (22): quando o indivíduo pode ter de se relacionar com até cem duplos criados pela sua imaginação, incluindo aí animais, como uma lagosta.

O veterano cineasta também declarou que aqui lhe interessava mais o processo que o resultado. “Como filmar dentro da cabeça de um louco? Eu não sabia e continuo não sabendo”.

De toda forma, o que resultou no filme parece carregar na estilística literária, principalmente nos momentos solitários de autorreflexão do protagonista e de suas Anas. Tal forma transposta para o cinema, normalmente, vem marcada com um peso extra (e por isso danoso) àquilo que o drama almeja conquistar.

E, na sua forma, Aos pedaços está interessado em sombras, no contraste entre o preto e o branco, e em geometrias e simetrias, o que é coerente com a ideia do duplo casamento de Eurico. Mas há também algo de frio em tudo isso, entregando aos atores uma responsabilidade muito maior do que parece lhes pertencer num projeto tão particular como esse.

Acompanhe a entrevista de hoje (23) com os realizadores dos filme exibidos na noite de ontem (22) no vídeo abaixo, hospedado no canal do Festival de Gramado no YouTube.

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