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Festivais

48º Gramado (2020) Todos os Mortos / La Frontera

Segunda noite do festival apresentou quatro obras com personagens em desconforto com o mundo que os cerca

Por Luiz Joaquim | 20.09.2020 (domingo)

na foto divulgação, acima, de Edison Vara, o crítico e apresentador Roger Lerina entrevista Matheus e Enock, do filme Inabitável.

É clara a evolução da dupla Enock Carvalho e Matheus Farias como diretores cinematográficos se considerarmos as ambições (e os resultados) alcançados na pequena filmografia dos pernambucanos. Pelo terceiro curta-metragem deles que veio ao mundo – Inabitável, exibido ontem (19) no 48º Festival de Cinema de Gramado –, ficou clara a segurança com a qual conduziram um enredo que poderia desaguar em algo banal, mas, ao contrário, revelou-se consistente, urgente e poético (esse último condimento faz toda a diferença).

Na busca pela filha Roberta que não voltou de uma festa para casa na noite anterior, uma mãe residente numa comunidade pobre do Recife (defendida com segurança pelo talento de Luciana Souza) percorre os caminhos tradicionais em casos assim: a emergência em hospitais, a identificação de corpos em necrotério, mas não a polícia, que “não fará nada por minha filha”, explica a protagonista para a vizinha que a ajuda (Erlene Melo).

Luciana Souza (d) em cena de “Inabitável”

Na busca, a mãe Marilene encontra no quarto de Roberta um objeto estranho, autônomo em sua luz e calor, que funciona como a chave que abrirá a porta para o fantástico no filme – aspecto sempre presente nas obras de Enock e Matheus. O desfecho de Inabitável, com Roberta resgatando o objeto misterioso, seria simplório se não viesse acompanhado de uma frase absolutamente eloquente para o contexto daquelas duas personagens neste mundo difícil de ser habitado por elas (Marilene, uma mulher negra e pobre; Roberta, uma mulher trans negra): “Estamos atrasadas”.

A aridez fabular de Inabitável deu espaço, na sequência, para a gréia animada de Otto Guerra e Erica Maradona no filme Subsolo. No curta-metragem, as desventuras de amigas numa academia de ginástica, que, em busca de um “shape” legal, se submetem ao tratamento ‘no brain, no pain’ sob as orientações de um instrutor que quer mergulhar num lago de suor de seus alunos esforçados. Enquanto isso, no subsolo da academia – que queima a energia de seus alunos ao som da clássica oitentona Estrelar, de Marcos Valle -, é produzida ‘comidinha saudável’, sendo a mesma logo, logo, consumida pelos ‘atletas’ que ajudaram a produzi-la enquanto malhavam. Subsolo é puro sarro com o universo da forma perfeita, cuja animação nos dá um traço estranhamente divertido para aquele peculiar ambiente.

A gréia de Erica Maradona e Otto Guerra em “Subsolo”

LONGAS – O brasileiro Todos os mortos abriu a noite competitiva de ontem entre os longas-metragens, apresentando ao Brasil, pela primeira vez, esse novo título coassinado por nomes que, não é de hoje, merecem bastante atenção: Caetano Gotardo e Marco Dutra.

Após passagem pelo Festival de Berlim, San Sebastian e o IndiLisboa (de onde saiu premiado), Gramado foi a porta de entrada por aqui para Todos os mortos, mas, infelizmente, a exibição de ontem pela tevê e por outros meios em streaming foi prejudicada pelo arquivo do filme exibido. Como resultado, tivemos a obra apresentada com a compressão do som equivocada. Em outras palavras, intervenções da trilha sonora musical e do som ambiente se sobrepunham a diálogos importantes, comprometendo a função de ambos – da trilha e dos diálogos – na narrativa. E ainda, ao final, os créditos correram em velocidade mais do que duplicada, tornando impossível a sua leitura.

Detalhe que o som, em particular, tem uma outra e predominante função neste trabalho. É por ele, reproduzindo ruídos próprios do mundo contemporâneo sobre um contexto visual do final do século 19, que o espectador irá perceber pela primeira vez, na tessitura cinematográfica (como já declarou Caetano Gotardo), o quanto do nosso passado – no que diz respeito a aspectos do colonialismo, da distinção entre classes sociais, e das questões raciais -, está no nosso presente.

De qualquer forma, mesmo com os problemas técnicos, foi possível perceber a força de Todos mortos. O que ele tem de atraente é exatamente nos introduzir a um rigoroso contexto dramatúrgico (e depois quebrá-lo) ali entre um ano simbólico para uma pretensa nova política social do país – ano da proclamação da república (1889) – até o carnaval de 1900: porta de entrada para um novo milênio, com as expectativas habituais de progresso em tempos como estes.

Mesmo antes de contrastar o rigor dramatúrgico do passado com o áudio e as imagens dos dias de hoje, Todos os mortos já se mostrava eloquente nas diversas circunstâncias vilipendiosas, principalmente sobre a figura da personagem vivida por Mawusi Tulani (em cena com uma altivez destacável). Ela é Iná, que, no passado, serviu como escrava da antes rica família Soares, de cafezais paulista. Já na República, a mesma família ainda a obriga, por exemplo, a distorcer um ritual religioso de seus ascendentes para ajudar na recuperação da matriarca branca Isabel (Thaia Perez), a pedido da filha Ana (Carolina Bianchi), que vive assombrada pelos mortos dos escravos da antiga fazenda.

Cena de “Todos os Mortos”

A própria insistência de Isabel e Maria em ensinar uma polca pelo piano ao pequeno João (Agyei Augusto), filho de Iná e contra a vontade desta, revela-se outro símbolo de imposição de uma cultura sobre a outra. Não precisamos ir tão longe para enxergarmos um paralelo com os dias de hoje. Na noite de abertura do festival (18), o personagem Orlando de El silencio del cazador faz a mesma prática, quase que sequestrando Surdo, um menino de origem indígena, para levá-lo as suas caçadas proibidas.

Já o longa colombiano, La frontera, do jovem diretor David David, e exibido após Todos os mortos, é um primor de construção dramática entrelaçado com um real drama sócio-político próprio da fronteira entre a Colômbia e a Venezuela.

Entre as várias crises estabelecidas pelos dois governos em sua região fronteiriça, acompanhamos uma família de origem indígena formada por Diana (Daylin Vegas Moreno), seu marido Chevrolet (Nelson Camayo) e o seu irmão Jorge (Yull Núñez). O grupo assalta viajantes que tentam burlar a fronteira fechada em trilhas incomuns da região.

Acontece que uma situação afasta Diana definitivamente de Chevrolet e Jorge, com o detalhe que aquela está em adiantado mês de gestação. Solitária em sua tapera, numa região árida e com escassez de água, acompanhamos o martírio da jovem solitária, sem familiares e totalmente dependente da inóspita natureza ao redor para sobreviver.

Daylin Vega Moreno em cena de “La Frontera”

O contexto de violência e desregulação da fronteira acaba por trazer ao seu convívio duas figuras inusitadas ao cotidiano de Diana: Miguel, um procurado pela força militar colombiana (Alejandro  Aguilar), e a tagarela Chalis (Sheila Monterola), uma mulher ludibriada por um mototaxista que a ajudava a atravessar a fronteira.

Com o contraste que apresenta entre todos os personagens, unidos ali pela miséria e pela absoluta necessidade de cooperação para sobreviverem, David David consegue estabelecer, ao mesmo tempo, humor, amor e esperança.

E, o que há de principal, como símbolo maior de esperança ali, é a filha da Diana que está para nascer na véspera do Natal – a quem a alucinada Chalis sugere batizar como ‘Deusa’. De fato, a analogia da menina pobre que virá ao mundo num casebre, não sob a atenção de três rei magos, mas pelas mãos de uma atrapalhada colombiana, é competentemente comovente. La frontera, entretanto, confronta a esperança da ficção contra a rispidez da realidade, nos dando um desfecho tão duro quanto possa parecer, de fato, a vida dos esquecidos na fronteira dos dois países.

Acompanhe a entrevista de hoje (20) com os realizadores dos filme exibidos na noite de ontem (19) no vídeo abaixo, hospedado no canal do Festival de Gramado no YouTube.

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