48º Gramado (2020) – Um Animal Amarelo + curtas
Uma fábula revisionista pela ótica dos colonizados e a partir de um patético cineasta.
Por Luiz Joaquim | 21.09.2020 (segunda-feira)
– na foto divulgação, acima, de Edison Vara, o crítico e apresentador Roger Lerina entrevista equipe de Um Animal Amarelo.
O melhor filme de Felipe Bragança. É o que se pode afirmar com razoável tranquilidade ao fim de uma sessão de Um animal amarelo – terceiro longa-metragem brasileiro exibido em competição nacional no 48º Festival de Cinema de Gramado. Na verdade, a obra é uma das mais instigantes feitas recentemente no Brasil sobre o Brasil; sendo a nossa origem, a nossa identidade (o que é isso?), nosso lugar no mundo e as nossas pretensões os alvos explícitos do discurso cinematográfico do filme.
Vai além dessa lista, na verdade, o desejo de alcance de Felipe com o seu Animal. E ele é exitoso.
Com suas imagens postas e sobrepostas por diversas proposições de leituras que chegam ao espectador por uma poética narração em off, numa voz luso-feminina a percorrer todo o filme (mas sem nos cansar), temos aqui, encerrado no enredo, um casamento bem refinado entre a trajetória tragicômica e fabular de um cineasta brasileiro, com o peso da herança deixada pelos colonizadores do Brasil e, além disso, a sombra (o ‘animal amarelo’) da vilipendiada cultura africana que segue o nosso herói por onde ele for.
Felipe ainda abre espaço para uma revisão de poderes a partir da relação entre colonizador e ex-colonizado, estando Portugal e Moçambique no centro desse embate.
Soa confuso? Mas não é. A opção pelo humor com o qual Felipe impregna o nosso herói Fernando (Higor Campagnaro) – um jovem realizador brasileiro desejoso de contar por um filme a história de seu avô Sebastião (Herson Capri), mas que vai parar na fronteira entre Zimbábue e Moçambique e, depois, em Portugal negociando joias – facilita a deglutição a respeito de tanta autorreflexão sobre o lugar do brasileiro (o patético Fernando) no mundo. Ou, ainda, de brasileiros, artistas da geração de Fernando (e de Felipe), nascidos nos 1980, num país sob a então perspectiva da redemocratização, após duas décadas de ditadura militar.
Felipe Bragança reiterou o termo ‘ruína’ em sua apresentação do filme na noite de ontem (20) e no debate on-line de hoje (21). E, de fato, ver o filme em 2020 exulta essa ideia de ruína, e a conexão da obra com ela está, inclusive, em destaque no enredo. Por exemplo, na última das cinco partes em que o filme é dividido (1. Memórias coloniais; 2. Um herdeiro; 3. Fábula do pirata falido; 4. As merdas eternas de Portugal; 5. Tristeza tropical), estamos no Rio de Janeiro de 2019. Fernando está de volta da sua aventura na África e Europa, e reencontra seu país tendo como trilha sonora a voz do presidente Jair Bolsonaro esbravejando equívocos pela televisão.
Nesse sentido, Um animal amarelo, parece funcionar como um símbolo redondamente bem resolvido de um período de alegria e promessa de autoconhecimento nacional – corporificado por Fernando -, com esse período abrangendo a trajetória do protagonista desde seu nascimento, em 1984 (parte 2 do filme), até o reencontro com o país em colapso, regido pelo caos, em 2019.
Mas, ainda que alegre e promissor, aquilo que nasce em 1984 é assombrado pelo ‘animal amarelo’. As sombras, fantasmas ou, como se queira nomear, entidades que representam a cobrança aos brancos pelos séculos de opressão e violência praticadas contra escravos e afrodescendentes no Brasil parece ser uma tônica que merece destaque neste Gramado 2020. Haja visto Todos os mortos, realização também de diretores brancos, em que uma de suas personagens relaciona-se, num estupor, com imagens de escravos mortos.
Nesse sentido, a proposta autoderrisória – para aproveitar um termo usado pelo mediador do debate de hoje, Roger Lerina – com volume alto (mas elegante) de Um animal amarelo poderia ser lida também como uma carapaça de autoproteção? Afinal, a reiterada descrição depreciativa a respeito da patetice de Fernando diante da África, diante da Europa, de seu país e de si próprio, pode soar também como uma capa de segurança do filme contra uma possível situação de confronto a respeito da ideia de lugar de falar – ponto absoluta e crescentemente caro (com razão) àqueles que reivindicam seu lugar.
Mas, deixando a conclusão sobre tal questão para quem é de direito (que não é este crítico pardo a escrever aqui), o que podemos afirmar é que Animal amarelo merece visão, revisão e nova revisão, uma vez que Felipe demonstra agora não apenas um confortável domínio sobre a sintaxe cinematográfica, mas, por ela, nos faz acessar algo maior. Algo que tira o espectador do lugar de espectador, tornando-o também um contestador sobre a nossa responsabilidade nisso tudo.
CURTAS – A mostra competitiva da terceira noite do 48º Festival de Gramado iniciou forte com o belo e duro curta-metragem de Henrique Amud e Lucas H. Rossi dos Santos, forjado a partir de imagens de arquivo, em sua maioria, para cobrir a fala do jornalista Dermi Azevedo.
Em Atordoado, eu permaneço atento, Dermi conta sua própria trajetória profissional e, com sua voz compassada, ao tratar dos abusos contra a humanidade praticados pela ditadura no Brasil, empresta ao filme a urgência de sua veiculação em 2020. É particularmente tocante a forma como expressa sua preocupação diante daquilo que nunca mais esperava ouvir, como por exemplo, um presidente da república do Brasil saudar um torturador. Dermi expressa: “O povo parecer não perceber, por incompreensão, a gravidade de tudo isso”.
Atordoado, eu permaneço atento firma, portanto, sua premência em propor ouvirmos os mais velhos, os mais experientes. Aqueles que experimentaram a dor em sua personalização mais cruel.
O curta-metragem seguinte, o carioca Blackout, de Gabriela Freitas, iniciou promissor, mas logo caiu numa estrutura simplória para disparar seu discurso contra o racismo. Discurso também urgente e necessário, mas aqui com impacto cinematográfico limitado.
Acompanhe a entrevista de hoje (21) com os realizadores dos filme exibidos na noite de ontem (20) no vídeo abaixo, hospedado no canal do Festival de Gramado no YouTube.
0 Comentários