É Tudo Verdade (2020) – Meu querido supermercado
Prateleiras em ordem como metáfora para repensar a própria vida
Por Felipe Berardo | 27.09.2020 (domingo)
Começaram na quinta-feira (24) as mostras competitivas nacionais e internacionais da 25ª edição do Festival É Tudo Verdade que acontece de forma online e tem a programação disponível a ser checada aqui. O longa nacional que abriu a competição foi Meu querido supermercado (2019), primeiro longa-metragem da diretora Tali Yankelevich, que teve estreia mundial no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã do ano passado e também foi exibido em outros festivais de documentários do circuito internacional desde então.
O filme, como mencionado pela sinopse e pela diretora, retrata as histórias de funcionários de um supermercado em meio a suas atividades repetitivas e propõe aquele espaço como uma estrutura de microcosmos para o mundo. Logo no começo, inclusive, esse interesse é perceptível pelo registro da construção do supermercado que é representada como a criação de um universo próprio. Enquadra-se, sem muito foco nas figuras humanas trabalhando, o colocar de azulejos, o preenchimento de prateleiras no processo de decidir onde cada produto ficará e o ligar das luzes, que é até mesmo acompanhado de uma citação bíblica, explicitando esse desejo de constituir um gênesis para o espaço a ser vivido pelos personagens.
Essa sequência inicial já é bastante indicativa do ponto mais contestável do filme que é seu interesse em construir algo universal e metafísico utilizando-se daquele cenário e daquelas pessoas como catapultas para seus temas e aspirações maiores. Partindo disso, há uma separação muito clara entre realizadores e quem é observado, imposta também formalmente pelo rigor e controle das imagens captadas que não parecem surgir da interação natural da câmera com o espaço. Parece inicialmente uma tentativa pesada demais de também transformar os funcionários aqui em representações desse simulacro do mundo, utilizando seus desejos e crenças para criar discussões além de suas próprias vidas.
Os melhores momentos do filme, no entanto, e esses cobrem boa parte de sua curta duração de 78 minutos, acontecem quando são descobertas as partes únicas e importantes das vidas experienciadas fora do mercado que revelam-se de formas diferentes durante seus expedientes. Alguns através de pequenas ações cotidianas que transcendem suas atividades repetitivas como o artista dos cartazes que desenha suas próprias artes em intervalos com fones de ouvido ou a auxiliar de limpeza que canta enquanto passa pelos corredores e alas. Outros através de relacionamentos mais instigantes e singulares como a carismática dupla de atendentes de balcão da padaria que parecem ter um interesse mútuo e ao mesmo tempo não correspondido ou a gerente de segurança que observa ansiosamente sua filha que trabalha como operadora de caixa através das câmeras de segurança.
Há um balanço tênue e agradável carregado pelo filme entre a carga emocional advinda do aprisionamento da rotina proposta pelo trabalho daquelas pessoas, a já citada gerente de segurança por exemplo, e um bom humor idiossincrático que pode surgir entre esses indivíduos interagindo como a dupla de atendentes da padaria ou o padeiro obcecado por cultura japonesa que chega a discutir quem é um maior exemplo Deus ou Goku. O que essa estrutura agradável e animadora pode ajudar a esquecer, no entanto, é que o supermercado serve apenas como um véu ofuscador de todas as virtudes e falhas não inicialmente aparentes que tornam todas essas pessoas vistas aqui tão interessantes, não é a rotina ou a relação das pessoas com seus trabalhos que é de valor aqui ou que permite mostrar-se o que é valoroso.
O retorno ao final do filme, então, em insistir na transformação do supermercado em um espaço de microcosmo acaba indo de encontro com suas maiores forças que residem na especificidade de cada um de seus personagens como indivíduos e não parte de um supermercado que não é querido por ninguém. Ainda que com decisões imagéticas interessantes, utilizando sobreposições de imagens e uso de cores para construir esse cenário do supermercado como cosmos, a comparação com algo maior parece inerentemente falsa. Aquele espaço não significa nada além dos momentos vividos pelas individualidades que mantém-se ali por razões pragmáticas do sistema vigente atual, existências não podem ser resumidas àquele espaço porque o mundo e as vidas de verdade acontecem fora da jornada de trabalho.
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