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Críticas

Rapado

A quebra do naturalismo cinematográfico no cinema argentino por um filme admirado por Lucrecia Martel

Por Felipe Berardo | 08.09.2020 (terça-feira)

Rapado (idem, Argentina/Holanda, 1992) foi o filme escolhido por Lucrecia Martel para a mostra do Festival de Locarno desse ano intitulada “Uma viagem pela história do festival”. A proposta da mostra era voltar sua atenção ao passado, com 20 realizadores importantes a edições passadas do evento selecionando um filme que fosse formativo ou importante na sua relação com o cinema e também que fizesse parte da história do festival.

O longa escrito e dirigido por Martin Rejtman é uma comédia seca e melancólica sobre um jovem chamado Lúcio (Ezequiel Cavia) que tem sua motocicleta, dinheiro e até mesmo sapatos roubados durante uma madrugada. O assalto acontece numa quebra de expectativa estranhamente cômica logo nos primeiros minutos, realizado pelo homem na garupa do protagonista que descobrimos ser um desconhecido pegando carona, algo que exemplifica bem o tom e lógica adotadas durante o resto do filme também.

O que segue após o assalto, por exemplo, não são atitudes ou pensamentos afetados pelo evento por parte do protagonista, tudo surge de preocupações concretas e imediatas como conseguir dinheiro para o ônibus e chegar em casa ou de estímulos confusos como parar na frente da vitrine de um arcade para observar pessoas. É uma introdução a uma vida desinteressada e apática de um jovem sem espaço ou papel definidos para si, movimentada por necessidades e impulsos que parecem inexplicáveis até para o personagem. 

A partir desse ponto, o diretor parece mais interessado em criar uma lógica melancólica própria para a juventude vivida em Rapado, favorecendo muito mais tempos “vazios” com conversas fúteis e ações sem consequências, que uma progressão narrativa e de personagens convencional. Os aspectos formais do filme, como a montagem e fotografia, também seguem essa lógica e são utilizados de maneira a intensificar esse sentimento, impondo um ritmo lento e fragmentado através das imagens extremamente controladas por enquadramentos e movimentos de câmera. Embora seja o longa de estreia do diretor, Rapado parece pensado por alguém já muito fluente e versado na linguagem cinematográfica de um certo tipo de cinema de arte prestigiado por cineastas e críticos. 

Esse sentimento de melancolia e de dissociação trabalhado formalmente pelo filme através do personagem de Lúcio se materializa na forma de atitudes sem um propósito claro do personagem como uma ida a um cabeleireiro para raspar a cabeça ou tomar interesse por roubar motocicletas, quase como se estivesse buscando ao menos algum tipo de reação externa e consequências que justifiquem e provem sua existência em meio aos outros, algo que nunca realmente acontece de forma suficiente, principalmente por parte de sua família.

Esse isolamento em relação a sociedade tem uma ferramenta significativa na utilização da madrugada como período de tempo em que boa parte do filme se passa. O protagonista vive afastado de outros, num período de tempo suspenso em que está costumeiramente sozinho. A não ser quando está acompanhado de seu amigo, Damián (Damián Dreizik), que parece ser mais um relacionamento conveniente pela situação similar em que ambos se encontram.

Damián também faz parte dessa juventude perdida sem direção, mas parece muito mais ciente e disposto a navegar pelos conceitos e regras vigentes no mundo que vivem, utilizando ações similares a Lúcio, mas com intuitos mais definidos de melhorar sua própria vida como as tentativas de roubar motos e o uso de cédulas falsas como forma de ganhar dinheiro ou o interesse em videogames de corrida de moto como substituto para o desejo não correspondido na realidade.

O uso da figura da motocicleta, inclusive, que já serviu como símbolo de rebeldia e liberdade jovem ser ressignificado aqui para novos tempos com motos quebrando e equivalentes virtuais em videogames é mais um elemento interessante que recontextualiza a relação que a juventude tem com tudo isso. Acaba criando mensagens interessantes em conjunto com a sátira presente nos adultos que têm como maior característica sua constante ausência e desinteresse em quase tudo que não seja o fascínio da mãe de Lúcio pela cultura do Canadá, que volta da viagem para um funeral de família falando apenas de curiosidades bobas.

Tudo isso dito sobre o filme como obra independente, há algumas coisas mais a se dizer quanto ao relacionamento do filme com Lucrecia Martel. O motivo aparente para a escolha seria fácil de imaginar já que o filme foi um dos importantes precursores do Novo Cinema Argentino ao qual Martel é associada, mas a justificativa dada pela cineasta é mais interessante e pessoal do que apenas uma visão histórica do cinema de seu país. 

A diretora cita seu interesse na quebra com o naturalismo cinematográfico tão presente no cinema argentino da época e com a imposição de ideias de um realismo que chama de medíocre, mas também na beleza encontrada nos indivíduos excêntricos, numa vida sem épicos e na linguagem falada no filme.

Esse último ponto é particularmente interessante por não ser algo óbvio a alguém não fluente no idioma, mas a diretora conta de sua memória que numa conversa com Rejtman, esse mencionou como a maneira peculiar que seus personagens conversam era uma invenção para seus filmes, assim como o inglês do cinema norte-americano também o é, não sendo falado em lugar algum do mundo. Martel diz que as falas e o som em Rapado anunciavam uma nova geração cinematográfica no país e que compartilha uma perspectiva sonora particular de criar os sons dos personagens e tomar o passo necessário de inventar o espanhol para o cinema. 

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