Três Verões
Perspectivas sobre dois lados de um mesmo ‘Brazil’
Por Luiz Joaquim | 17.09.2020 (quinta-feira)
Em outubro de 2019, a boa recepção de Três verões (Bra., 2020), de Sandra Kogut, pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e em dezembro no Festival do Rio, acendeu uma luz sobre a cabeça da mídia brasileira. Como assim? Depois de Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert, temos um novo filme protagonizado por Regina Casé no qual sua personagem é mais uma vez uma funcionária de uma família endinheirada e, nesse contexto, enxergamos um retrato ácido do Brasil?
Não podia haver promessa melhor para um filme nacional que, inclusive, chegou ontem (16) às plataformas virtuais por streaming.
Os três verões do título referem-se ao período entre o natal e o ano-novo de 2015, 2016 e 2017, quando conhecemos Madá, Madalena, de batismo (Regina Casé, inspirada). Ela é a caseira/governanta de uma mansão de veraneio à beira-mar, num condomínio de luxo no estado do Rio de Janeiro.
No primeiro verão, temos o sonho de Madá em comprar um terreno por R$ 10 mil para levantar seu negócio próprio – um quiosque de comida – ali pela redondeza, e conhecemos também seus patrões, dando uma brega festa, como um retrato tragicômico de novos ricos do Brasil. Enquanto entendemos que o patrão Edgar (Otávio Müller) opera esquemas escusos (que depois revelam-se criminosos), vemos a patroa preocupada com a decoração milionária da casa, e o filho do casal apaixonado por uma norte-americana (atenção para a nacionalidade da paixão do garoto).
No verão dois, Madá com os outros empregados, ainda ocupando a casa milionária, sofrem com o abandono dos patrões e com seus salários atrasados. Como alternativa de sobrevivência, apropriam-se da casa com a liberdade de moradores, e com seus objetos valiosos como moeda de troca para a remuneração que nunca receberam.
É nesse momento que um personagem, talvez o mais interessante aqui, ganha destaque: Seu Lira (Rogério Fróes, 86 anos, em forma). Ele, pai de Edgar, é um honesto professor aposentado que não reconhece aquele luxo obtido ilegalmente pelo filho, e sofre profundamente pelo fracasso pessoal de não ter conseguido educar o filho no preceito da honestidade com a qual conduziu a própria vida.
O verão três mostra o laço entre os esquecidos pelos novos ricos, que são os empregados e o velho pai (símbolo eloquente, nesse roteiro de Kogut e Ianna Cossoy Paro) numa cumplicidade ainda mais forte, amarrada pela necessidade de sobreviver ao caos deixado pelo crime de Edgar. A casa também terá um novo destino, e a vida precisará recomeçar, para alguns, sob a esperança, mais uma vez, dos fogos de artifício do réveillon.
A relação com Que horas ela volta? é feita com Três verões principalmente pelos dois pontos de vista – do empregador e do empregado – sobre uma mesma situação e um mesmo ambiente, mas são filmes distintos em suas intenções. Três verões aponta diversos vetores para diversos problemas sociais do Brasil atual. E de forma mais escancarada, num enredo mais livre ao entorno do que acontece aos personagens do filme da Muylaert.
Talvez o melhor exemplo esteja no tour turístico que os empregados promovem com a lancha dos patrões para levantar algum dinheiro. Momento em que chamam a atenção dos turistas sobre as mansões daquele litoral fluminense: “Ali, aquela casa abandonada, o dono foi preso”; “Aquela também”; “Aquela outra, limpinha, com movimento, é de jogador de futebol”, explica Madá em sua bruta sinceridade.
Alguns críticos se apressaram em relacionar Três verões com o sul-coreano Parasita (2019), de Bong Joon Ho, o que é fácil e também redutor. Kogut abarca aqui um espectro muito maior sobre a elite econômica brasileira do que Joon Ho faz com os seus ricos sul-coreanos. Para além dos preconceitos universais da burguesia que Kogut expõe (como expõe Parasita), em Três verões temos acesso também ao modus operandi de ladrões de colarinho branco (no caso, de bermuda e chinelo). E se em Parasita a malandragem do proletário é intencional, no filme brasileiro ela é circunstancial, movida por um senso de reparação urgente.
Mas talvez a maior distinção esteja mesmo na opção de cinematografia de Três verões. Há um espontâneo desprendimento com o registro visual das imagens, feitas pelo craque Ivo Lopes de Araújo, no filme de Kogut que o coloca longe de uma ideia mais tradicional de refinamento visual para a imagem cinematográfica.
A opção pela fotografia que é apresentada obviamente não desmerece o filme – cujo ótimo roteiro e performances de Casé e Fróes se sobrepõem a tudo -, e pode ser justificada como um casamento estético-visual com a perspectiva da humilde protagonista. Mas, sendo esse o argumento, seria igualmente uma opção redutora.
Basta lembrarmos, a título de ilustração, que os protagonistas miseráveis de Pixote: A lei do mais fraco (1980) tiveram refinado trabalho em sua fotografia, com assinatura de Rodolfo Sánchez, para retratar sua realidade.
Três verões, porém, é tão inteligente representante do que é o Brasil de hoje que já se tornou ponto de parada obrigatória na nossa atual cinematografia. Tão sofrida quanto é a própria Madá.
0 Comentários