25º É tudo verdade (2020) – Fico te devendo…
A explicitação de traumas deixados pela ditadura brasileira através de uma investigação familiar
Por Felipe Berardo | 04.10.2020 (domingo)
Exibiu sexta-feira (2) e ontem, na programação do 25º É Tudo Verdade, o longa Fico te devendo uma carta sobre o Brasil, interessado em contar as formas como a história familiar da diretora, Carol Benjamin, foi afetada pelo período da ditadura militar brasileira. A primeira impressão é que o filme parece insistir numa aparente tendência de documentários que debruçam-se sobre a ditadura como tema que é a investigação da realidade social, política e histórica do país partindo de experiências individuais, pessoais e afetivas, mas há mais a se oferecer aqui.
A busca principal aqui não parece ser transformar o núcleo familiar protagonista num símbolo representativo para as vítimas daquele regime, a cineasta busca entender sua história familiar e pessoal através dos arquivos e da história do país e não utilizar-se de sua história familiar para comentar ou refletir sobre o país como um todo. É uma diferença sutil, mas que se prova muito mais instigante.
Através da investigação e levantamento de materiais a diretora revela, ao mesmo tempo que busca compreender ao máximo, as tragédias e o sofrimento diretamente infligidos na família pelo governo e as consequências e traumas que esses criaram naqueles relacionamentos e naquelas pessoas tão próximas. As histórias individuais de hoje ainda são pautadas e esculpidas em parte por esse período violento e tão recente do Brasil, mas na família Benjamin são particularmente claros e trágicos.
A figura do pai, César Benjamin, que nunca falou abertamente com a filha sobre o que aconteceu enquanto preso ilegalmente durante anos e que negou-se em participar ativamente no filme começa como principal motivador para essa busca, mas logo ganha aprofundamentos e tempo para tornar-se mais que apenas essa figura. Na primeira parte do filme, no entanto, a mãe de César e avó de Carol – Iramaya Benjamin – é quem toma o protagonismo e torna-se principal figura de interesse.
Iramaya é representada como uma pessoa notável e heroica que parte do seu interesse como mãe na longa jornada pela liberdade do filho e mesmo após vai além como importantíssima agente política, responsável por papéis de liderança nos movimentos contra a ditadura e fundadora do comitê pela anistia de presos políticos pelo governo militar. Essa figura histórica, porém, não é o interesse principal e sim revelar, através de cartas escritas por ela própria para amigas, uma pessoa complexa de sensibilidade e inteligência impressionantes, mas com dúvidas e receios, especialmente após a libertação do filho quando a força e estabilidade emocionais não eram mais tão essenciais.
O documentário insiste no tema de que infinitas possibilidades diferentes vivem dentro de uma única pessoa e de fato trata com muito carinho e a devida atenção seus personagens. Até o avô militar não muito presente aqui é posto como uma figura falha e trágica, sem a força necessária para lidar com o conflito interno durante a prisão do filho nem com a percepção que, após 30 anos, seu casamento não era mais viável pela divergência de vidas e interesses com Iramaya.
César, o pai de Carol, inclusive, é posto próximo ao fim do filme também numa posição interessante quando a filha comenta através da narração que ao finalmente falar publicamente sobre suas experiências jamais comentou sobre sua mãe. A cineasta teoriza que a perda do protagonismo de sua própria história de aprisionamento acabou sendo uma preocupação e problema pessoal que não parece ter sido resolvido pelo silêncio imposto entre gerações sobre aquelas histórias.
E esse é outro tema caro ao filme que é mais ainda explicitado ao fim do filme em que a diretora fala sobre sua relação com seus próprios filhos como mãe e na forma que busca quebrar esses silêncios para permitir uma real aproximação. A cineasta comenta como nunca entendeu sua avó tão completamente quanto como lia suas cartas pessoais para a amiga em que comenta estar em busca por realizações pessoais e sobre a solidão mesmo após a volta de seus filhos para o Brasil.
Embora o filme seja muito bem realizado dramaticamente com uma pesquisa louvável de materiais, há uma certa falta de inspiração formal pelo filme que resulta-se principalmente da narração utilizada durante quase todos os 88 minutos. A utilização de materiais de arquivo com vídeos das décadas de 1960 até os anos 2000 e imagens de cartas e documentos relevantes, misturados a gravações recentes também com diferentes tipos de câmera funcionam bem, mas as imagens parecem constantemente serem extensões quase redundantes da narração. Limita-se assim a potencialização do filme como um todo quando um elemento tão essencial para o cinema parece tornar-se subserviente, nem mesmo a um desenho de som como propõe Lucrecia Martel, mas apenas à narração constante que também não é realizada de uma forma particularmente imaginativa.
Apesar disso, Fico te devendo uma carta sobre o Brasil continua sendo um belo exercício em como conciliar aspectos políticos e históricos a valores emocionais e afetivos, não permitindo-se cair em ignorância política ou egocentrismo. Além de ser também um trabalho importante atualmente para lembrar exatamente a forma como o Brasil chegou nesse momento que vivemos, há comentários ao final que denunciam o atual presidente como apoiador claro da ditadura, mas o que se mantém após algum tempo é outra cena. Um discurso do último ditador, João Figueiredo, em que justifica a proposta da anistia dizendo que as ideias e valores do golpe, chamado por ele de revolução, não seriam esquecidos com o passar das gerações e é genuinamente triste reconhecer que não só não foram esquecidos, mas continuam vigentes através do governo.
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