25º É tudo verdade (2020) – Filmfarsi
Filmfarsi – Melodrama, estereótipos e sexo antes do véu
Por Ivonete Pinto | 04.10.2020 (domingo)
O título acima contém algo enganoso. Sexo antes do véu não representa exatamente o contexto da época explorada em Filmfarsi (Ehsan Khoshbakht, Irã/Reino Unido, 2019), pois o véu sempre existiu na cultura persa. Ao menos desde os anos 644 quando as tropas de Maomé ocuparam o Império Persa. O título, entretanto, corresponde ao que acontece com o documentário exibido no 25º É Tudo Verdade, que passa a ideia de que todos os filmes iranianos eram “filmfarsi”. Não eram. Como um documentário de tese, ele vai ajeitando seus argumentos para comprovar suas assertivas. Com isto corre o risco de cair num certo essencialismo, que coloca o cinema da época pré-revolução de 1979 num mesmo balaio de gatos.
Filmfarsi, como gênero, é uma designação para um conjunto de filmes populares, que muitas vezes debochavam da própria condição de desenvolvimento econômico e cultural do Irã. Mais ou menos o que serviria para definir as chanchadas brasileiras. Apelativos, construíam-se em cima de velhos clichês do melodrama, de raiz inspirada no cinema egípcio e turco, com mais pitadas de sexo. Na verdade, o “sexo” nada mais era do que mulheres com seios desnudos, personagens prostitutas (na maioria das vezes apenas mulheres liberadas) e uma lascívia masculina exacerbada. Aliás, graças ao desejo masculino irrefreável, o islamismo condenou as mulheres a se cobrirem dos pés à cabeça. Nos hadiths (ditos) de Maomé, a mulher deve estar hejab (modo de vestir-se e comportar-se), cobrindo-se para não provocar o desejo masculino, incontrolável. O shador (tenda) é o mais indicado para refrear este instinto.
Isto tudo existia no cenário dos anos 70, antes do clero xiita tomar o poder, década em que predominam os filmfarsi. Para chegar ali, é preciso retroceder um pouco na história, algo que o filme de Khoshbakht tenta resumir.
O Irã chamava-se Pérsia até 1935, quando um militar, Reza Xá Pahlevi, dá um golpe, entrona-se rei (tradução para xá), tal qual Napoleão, e moderniza o país à força. A dinastia Pahlevi, inspirada na vizinha Turquia de Ataturk, mudou o nome de Pérsia para Irã, para voltar às origens étnicas (em farsi, Irã significa terra de arianos ) e proibiu o uso do shador, entre outras coisas.
Desde então, e principalmente com a posse do filho Mohammad Reza Pahlevi, a imagem do país no mundo era a de mulheres usando minissaia, homens imitando James Dean e algum rock-and-roll nas vitrolas. Uma imagem apropriada para ilustrar o que acontecia na capital, Teerã, pois no interior ultra conservador havia resistência, as mulheres se recusavam a sair às ruas sem estarem hejab. Ou seja, mesmo com os 40 anos dos Pahlevi no poder, havia um caldo de cultura islâmica ortodoxa que alimentou a própria revolução de 1979, quando liderados pelo aiatolá Khomeini, a população derrubou o Xá. A partir daí, a lei passou a ser o contrário: as mulheres eram obrigadas a cobrirem o cabelo para sair às ruas (na verdade, as mulheres foram traídas, pois os religiosos haviam prometido que o direito à vestimenta ocidental seria mantido, só que não. Traições de outras ordens aconteceram também, como a abolição dos grupos de esquerda, entre eles o partido comunista Tudeh).
O filme mostra algo disto, mas passa muito de raspão por episódios importantes para entender o todo. Como Mohammed Mossadegh , primeiro- ministro derrubado pela CIA com a ajuda dos ingleses. Mossadegh, no início dos anos 1950, promoveu uma virada na economia do país ao nacionalizar a exploração do petróleo. O sentimento nacionalista que surge com Mossadegh é fundamental para entender o que vai mover a revolução islâmica e a guerra contra o Iraque. Nos primeiros e turbulentos anos da revolução, os religiosos acabaram passando a boiada de outras agendas, como a vestimenta da mulher e a censura às manifestações artísticas. Porém, vem do curto período de Mossadegh (1951-1953) o combustível do nacionalismo que até hoje persiste em relação aos EUA e em relação a Arábia Saudita e Israel.
No âmbito do É Tudo Verdade, este pano de fundo vai ser compreendido melhor se o espectador viu também Golpe 53 (Taghi Amirani, Irã/Reino Unido, 2019), um documentário investigativo que quem perdeu deve fazer uma revolução para conseguir vê-lo, seja através de lançamento comercial, seja através da espúria prática do download . Ainda no É Tudo Verdade, O Rei Nu (Andreas Hoessli, Alemanha/Polônia/Suiça, 2019), também vale ser recuperado, pois descortina os efeitos da revolução em outras paragens, no caso, a Polônia.
Mulheres sem-vergonha – Filmfarsi tem uma montagem bastante feliz ao iniciar com a situação dos incêndios criminosos nas salas de cinema. Há imagens raras como a do Cine Rex, da cidade de Abadan, onde morreram mais de 400 pessoas (o filme fala em 400 mortes, há fontes que dizem que chegaram a 700).
Estes incêndios localizados ilustram bem o quanto os grupos religiosos xiitas radicais apossaram-se de um interdito para demonizar o que, de fato, representava a cultura ocidental, cheia de mulheres em trajes indecentes a provocar os homens. Segundo o Corão, não se pode imitar o trabalho de Deus (Alá) representando figuras humanas. Nem fotos da família na parede são, em tese, permitidas (nas casas iranianas, a clássica foto do casal fica no quarto, não na sala. Os iranianos sempre deram um jeitinho para burlar os interditos). O cinema pagou o preço neste início da revolução, mas paradoxalmente ele próprio teve um impulsionamento pelo regime teocrático. Khomeini incentivou a produção criando a Farabi, a fundação de fomento de filmes ─ embora cheio de proibições, como o toque físico entre casais, etc. ─ porque queria passar, através desta poderosa mídia, os ideais da revolução, a propósito, ainda em curso.
Voltando ao período enfocado pelo documentário, nota-se que ele traz uma informação equivocada. Diz que nos anos 1970 a produção média era de 100 filmes por ano (no Brasil alcançamos este número com as pornochanchadas). Hormuz Kéy, que traz um quadro com a produção ano a ano, mostra que nos anos 1970 a média anual de filmes iranianos era de 60 títulos lançados comercialmente. Em “Le Cinéma Iranian – L’image d’un societé em bouillonment” (“Cinema iraniano: a imagem de uma sociedade em turbulência”), por sinal, Kéy não valoriza o gênero filmfarsi. Valoriza, sim, filmes como A vaca (Dariush Mehrjui, 1969), que o diretor de Filmfarsi apenas cita, e que foi a grande influência de cineastas como Abbas Kiarostami. Ou seja, no mesmo tempo em que aconteciam os filmfarsi, havia cineastas produzindo com outros temas, outras estéticas. O que está no filme é que Mehrjui fez um remake não autorizado de James Bond antes de filmar A vaca.
Tem peso considerável no documentário a vocação de copiar, que vem de longe. Os filmfarsi tinham enredos plagiados, desde Sabrina, de Billy Wilder), passando por Os boas-vidas (Fellini) e Gilda (Charles Vidor), até o remake de Acossado (Jean-Luc Godard). O filme trata isto como obsessão para o cinema iraniano. De fato, há aqui um detalhe elucidativo: o Irã não tem acordos internacionais que tratam de proteção a direito autoral. Não tinha no tempo Xá e, depois, Khomeini criou um decreto para oficializar o descompromisso. Por isto, inclusive, as traduções dos livros de Paulo Coelho vendem muito lá, mas são todas edições piratas não rendendo nada ao autor.
O grande mérito do Filmfarsi é o de apresentar imagens pouco ou nada conhecidas. O diretor recuperou materiais, alguns em VHS, e assim contribui para a preservação da memória não só do cinema, como da história política e social das últimas décadas do Irã. E apesar de existirem algumas lacunas e teses questionáveis, a fluidez didática da montagem, com o auxílio da narração, faz com que o espectador, mesmo o mais afastado daquela realidade, tenha uma noção dos acontecimentos, e uma noção do papel do cinema para contar a história de um país. Afinal, feliz do país que tem imagens preservadas para chamar de suas.
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