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Festivais

44ª Mostra ’20 Al-Shafaq: Quando o Céu se Divide

O excesso como estopim do extremismo religioso

Por Luiz Joaquim | 21.10.2020 (quarta-feira)

Al-Shafaq: Quando o céu se divide (Al-Shafaq: When heaven divides, Sui., 2019), de Esen Isik. 98 min. 12 anos. Novos Diretores.

Ao final da tarde da sexta-feira passada (16), após sair da escola na pequena cidade francesa de Confians-Saint-Honorine, o professor Samuel Paty, 46 anos, foi abordado por um jovem checheno de 18 anos que o matou e, na sequência, separou a cabeça do corpo de Paty. O jovem ainda expos a cabeça decapitada pelo Twitter e, antes que a rede social conseguisse retirar a imagem de circulação, cerca de 80 apoiadores do assassino registraram sua cópia e a fizeram circular novamente.

O que impulsionou a brutalidade foi o fato de, dias antes, Paty ter levado à aula, para uma turma de alunos com cerca de 13 anos de idade, uma caricatura de Maomé feita pela revista Charlie Hebdo em 2015 (e que resultou, à época, num ataque a sua redação). A ideia de Paty era ilustrar o tema ‘liberdade de expressão’.

Mas o que o ocorrido com Paty tem a ver com Al-Shafaq: Quando o céu se divide? O fundamentalismo religioso (seja de qualquer crença) e suas consequências.

Nesta produção suíça, dirigida pela turca Esen Isik, o espectador conhece o motorista de táxi Abdullah (Kida Khodr Ramadan, excelente). O mulçumano vive há anos na Suíça e lá cria dois filhos e uma filha ao lado da esposa. Na condução da casa é rigoroso, sobretudo com os filhos, no que se refere à educação religiosa.

Não há problemas com o filho mais velho, que funciona aqui como uma espécie de referência que o pai elege para o mais novo, Burak (Ismail Can Metin). Este, aos olhos de Abdullah, está sempre um passo atrás da rigorosa obediência ao islã imposta pelo pai.

Ismail Can Metin (e) em cena de Al-Shafaq: Quando o céu se divide

Inflado pela determinação opressiva de Abullah em transformá-lo num bom mulçumano, Burak encontra ainda um outro estímulo (este malévolo) dado por um empresário da região que financia o terrorismo. Naturalmente confuso, o jovem termina por distorcer a ideia contida em ser fiel ao Alcorão com a de se filiar a um grupo extremista para lutar na Síria em nome da Guerra Santa.

O interessante em Quando o céu se divide é mostrar a surpresa da família de Burak ao descobrir que o caçula, em segredo, partiu para uma missão que eles próprios condenam e nunca estimulariam.

Funcionando em quatro tempos bem administrados, o filme alterna a trajetória de Burak na Suíça com o trágico destino de um outro personagem na Turquia, no tempo presente e passado. O do menino Malik (Ahmed Kour Abdo).

No presente, Malik vive num abrigo de refugiados com o irmão mais velho. No passado, sabemos do horror sofrido por seus pais. O quarto tempo se dá exatamente no casual encontro entre Abdullah e Malik, duas almas destroçadas pelo extremismo, que tentam ajudar um ao outro, ainda que desajeitadamente.

Ahmed Kour Abdo e Kida Khodr Ramadan em cena de Al-Shafaq: Quando o céu se divide

O crítico Celso Sabadin, do Planeta Tela, registrou em sua rede social um comentário sobre o filme, que trazemos aqui com a sua anuência. Sabadin disse que considera o longa-metragem, assim como alguns outros similares

…neocolonialistas da pior espécie, ou seja, são produções de países historicamente colonializadores (sic) que se apropriam de temas relacionados à cultura árabe e travestem-se com um verniz supostamente artístico (para conseguir exibições em festivais de prestígio) exatamente para difundir ainda mais a imagem preconceituosa do árabe como sendo eternamente um radical religioso terrorista. E pior: utilizam-se de roteiristas e diretores de ascendência árabe (mas aculturados na Europa há muito tempo) buscando uma espécie de validação destes conceitos neocoloniais, enquanto mantém os produtores (que são, na verdade, os donos do filme) europeus.

Havemos de concordar quando o crítico lembra quem são “na verdade, os donos do filme”, e quando fala que produções têm interesse em “conseguir exibições em festivais de prestígio” (mas não seria legítimo a qualquer produção?). Entretanto, não parece razoável acreditar que haja uma inocência, neste caso, por parte da roteirista e diretora em termos de ser manipulada como uma peça dentro de uma estrutura maior do que ela.

Mesmo assim, não negamos que uma leitura como a apontada por Sabadin pode ser feita a partir do personagem de Burak. Porém, o que nos parece valioso no filme está exatamente no que ele provoca em sua família, em particular em Abdullah, ao acordá-lo de sua cegueira em impor uma só verdade, a da sua crença religiosa, a um filho em formação.

Dentro desse valor, entendemos que o filme esgarça o equívoco do excesso como algo danoso e propício a promover radicalismo. Não nos referimos à disciplina e ao rigor na educação, repetimos, mas ao excesso. O limite entre essas três instâncias (disciplina, rigor e excesso) – difícil de ser percebido e com possíveis consequências trágicas, como a sucedida ao professor Samuel Paty –, é o que parece interessar, em primeiro lugar, a cineasta turca Elen isik.

O foco do filme, portanto, está em como uma pessoa é levada a esse extremo, e não em acusá-la de extremista.

 

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