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Festivais

44ª Mostra SP (’20) Nadando Até o Mar Ficar Azul

A China que se transforma em Jia Zhang-ke

Por Ivonete Pinto | 30.10.2020 (sexta-feira)

Este é daqueles filmes que merecem uns 15 mil caracteres, no mínimo, para ser explorado. Em Nadando até o mar ficar azul (Yi zhi you dao hai shui bian lan, 2020) há tantas possibilidades de leitura, tantas propostas poéticas inscritas ali que valem reflexão mais empenhada. Mas em ritmo de festival, impossível uma dedicação maior, que fica para outra oportunidade.

O que calha  dizer agora são rascunhos de abstrações que nos são sugeridas pela sucessão de imagens documentais de Jia Zhang-ke, articuladas em 18 capítulos de diferentes tempos.

Antes das digressões, importante informar  que a estrutura do filme se dá a partir de um encontro de escritores que aconteceu em 2019 na província de Shanxi, terra natal do cineasta, e para onde ele sempre retorna em seus filmes. O evento literário nos apresenta os personagens centrais, através  dos quais conhecemos histórias familiares que revelam a história da China continental desde Mao Tsé-Tung, em 1949, até os dias atuais.  São 70 anos de história, onde a memória é a faísca condutora. Ao eleger este evento como ponto de partida, Jia Zhang-ke está valorizando a cultura do país, já que o que temos é a perspectiva de escritores que veem o mundo com uma sensibilidade fabular muito especial.

A fome – Nos primeiros planos do filme de aparecem imagens de estatuas meio enrugadas, que  passam a fazer mais sentido quando dão lugar às imagens de pessoas velhas, enrugadas. Talvez muito mais velhas que a aparência supõe. É um asilo. E Zhang-ke pratica um golpe baixo, pois  a trilha  musical um tanto lamentosa  nos coloca numa posição de empatia. Estas pessoas já viram fome, já viram guerras e agora (em projeção extra fílmica)  veem a pandemia. O  tema inicial, se podemos deduzir,  é mesmo a fome. Por que a  fome seria um tema importante num filme da rica China de hoje?

Jia Zhang-ke é o cineasta  que melhor pensa as transformações ocorridas na China nos últimos anos. Todos seus filmes, ficcionais ou não, trazem esta marca. Mas talvez O mundo (2004) seja o  mais enfático ao expor as mudanças por meio da simbologia  de um parque temático que reproduz lugares icônicos do mundo, como a Torre Eiffel,  Las Vegas e as pirâmides do Egito. Era a China trazendo para os chineses, de maneira prática e econômica, tudo o que de “melhor” existe no exterior. Passados mais de 15  anos, e com a gigantesca  rapidez do crescimento econômico chinês, boa parte daqueles frequentadores hoje teriam a  chance de ir até estes lugares verdadeiros, posar para fotos com seus indefectíveis V de vitória nas mãos.

Cena de “Nadando até o mar ficar azul”

Pouco tempo depois deste lançamento, em 2007, Zhang-ke foi o homenageado daquela Mostra de São Paulo, que recebeu  sua primeira retrospectiva. É também quando  Walter Salles o entrevistou. Dali surgindo o projeto de um documentário, em coautoria com o crítico francês Jean-Michel Frodon, “O Mundo e Jia Zhangke” (o documentário de Salles chama-se Jia Zhangke, um Homem de Fenyang). A maior parte das imagens, e das histórias do livro e do filme, têm relação direta com Fenyang, a cidade do cineasta situada na província de Shanxi. A Rimini de Fellini.

Frodon diz, no livro, que nos filmes de Zhang-ke não há visão moralizante, mas “a busca de equilíbrio entre o que ocorre na sociedade e a visão própria, particular do cineasta”. Este comentário serve para ilustrar tanto O Mundo quanto  Nadando até o mar ficar azul.

Tendo a fome como recorrência nos depoimentos, alguns se referem aos cupons de alimentação, algo que hoje fica distante face à pujança de comida na China contemporânea. A visão particular de Zhang-ke pode nos sugerir que o que alimenta o nacionalismo chinês da atualidade – e ele não é pequeno  –,  é esta valorização de um passado sofrido. A geração atual, que consome Porsches e Lamborghinis de modo obsceno, não pode esquecer que seus avós passaram fome. Zhang-ke não mostra este consumo, seu filme não é maniqueísta, mas basta uma imagem de pessoas trabalhando na terra e usando tênis novos de marca, para fazermos as ilações.

O que o cineasta faz questão de frisar sem rodeios, são pensamentos, ditos populares que transmitem  uma certa essência moral do povo chinês. Ele repete algumas frases que julga relevantes, como  este ditado: “o lugar que você nasce é o lugar que o enterra pela metade” É por isso que o lugar de nascimento também se chama “terra de sangue”.

Modernidade – Zhang-ke  não é de festejar a cultura do progresso que tomou conta da China. Ao contrário, é um crítico, e o já citado O mundo, pode ser somando a outros títulos ficcionais como Plataforma (2000) e   Em busca da vida (2006) e Um toque de pecado (2013)

A robusta obra de Zhang-ke faz dele um historiador inspirado, de olho no passado para compreender o presente. Hoje em dia, com o advento da pandemia provocada por um vírus (que muitos ideologicamente chamam de “vírus chinês”), ter os filmes de Zhang-ke disponíveis nos permite compreender um pouco melhor este país tão complexo.  O regime continua comunista, mas a economia é de mercado. As reformas de  Deng Xiaoping, desde  1978 vêm transformando a China com metas econômicas que todo cidadão está comprometido em alcançar. E isto tem relação direta  com produção e consumo, que por sua vez tem relação direta com a aceleração da construção civil, que implica na destruição de vilas inteiras, de bairros inteiros com as antigas habitações, os famosos hutongs de Beijin. Para não falar do sistema de trabalho escorchante, em jornadas de 14 horas por dia.

Cena de “Nadando até o mar ficar azul”

Nos depoimentos que o documentário traz, ninguém enfileira os problemas, mas por meio das lembranças, temos situações pontuais que exemplificam as distorções no novo modelo de vida das  famílias, com pais ausentes, avós criando os netos, etc. Sem o tipo de  rigor de um documentário de Coutinho (bastante lembrado quando a narrativa se dá por depoimentos para a câmera), o diretor chinês  se permite inserir imagens para enfatizar o contexto das falas. No capítulo 3, por exemplo, a  filha de Ma Feng fala de Fenyang e Zhang-ke nos mostra  uma rua  nos anos 1990 e a mesma rua nos dias atuais.

Enquanto acompanhamos a carreira de Jia Zhang-ke sempre com expectativa, não podemos deixar de pensar que ele cumpre um importante papel de registrar a memória. Tem visão crítica, mas não chega a bater de frente com o regime. Lembrando, a China tem esta idiossincrasia de ser uma ditadura comunista na política e liberal na economia. Seu coté  ditatorial prende e arrebenta. Há muitos cineastas que estão proibidos de filmar, muitos artistas presos, muita censura, inclusive a incursões por temas que envolvem homossexualidade. A China é moderna, mas não nos costumes. Evidentemente, para entender um  país de 1, 400 bilhão de pessoas não bastam os filmes de Jia Zhang-ke, nem os livros dos escritores retratados no documentário dele, nem ver os filmes de Chao Wang, o primeiro diretor a abordar temática homossexual.

A dica é ver os filmes de Jia Zhang-ke menos para compreender e mais para se encantar. Observar como um diretor consegue, a partir de histórias pessoais, principalmente as dele, retratar anseios de seres humanos comuns. Transitando entre  gêneros diferentes, ele consegue imprimir poesia em todos relatos. O título escolhido para este documentário imperdível, cujo significado só é revelado por um personagem ao final, é perfeito para representar a natureza poética no olhar de Zhang-ke:  Nadando até o mar ficar azul.

Nota do editor: Leia também crítica sobre As montanhas se separamde Jia Zhang-ke

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