44ª Mostra SP (2020) – DAU.Natasha
Conheça o projeto DAU. Uma experiência e produção questionáveis.
Por Felipe Berardo | 25.10.2020 (domingo)
Antes de comentar algo sobre DAU. Natasha (Rússia/Ucrânia/Inglaterra/Alemanha, 2020) como filme e objeto próprio, é curioso e importante entender a diferenciada lógica de produção através da qual a obra foi construída. O Projeto DAU foi inicialmente idealizado, há mais de uma década, como um filme biográfico sobre o físico Lev Landau pelo cineasta Ilya Khrzhanovskiy, mas transformou-se nas mãos do diretor e da equipe num projeto de escopo muito maior, interessado numa multidisciplinaridade entre cinema, ciência, arquitetura, performance e experimento social, tudo aparentemente guiado por uma megalomania desregrada.
Foi construído em 2009 um instituto de pesquisa científica e de tecnologia na Ucrânia, inspirando-se em institutos que existiam na União Soviética, que se tornou o maior cenário fílmico já construído na Europa onde centenas de pessoas passaram a habitar enquanto exerciam suas funções desde policiais a artistas, entre os quais cientistas realizando experimentos reais. Esse set gigantesco existiu por três anos, buscando simular a vida na União Soviética dos anos 1950 até os mais pequenos detalhes como roupas, arquitetura, dinheiro e tudo mais, precisamente construídos como forma de criar uma nova realidade onde todos os habitantes viveriam seguindo aquele tempo.
Durante esse período, no espaço habitado por cerca de 400 atores amadores e dez mil figurantes, foram gravadas 700 horas de material pelo diretor de fotografia Jürgen Jürges com uma única câmera e mais duas pessoas em sua equipe que se moviam pelo cenário. Dessas 700 horas foram montados 15 longas-metragens, lançados em festivais e pelo site do projeto, além de uma exposição imersiva, séries e documentários para ainda serem lançados.
Tudo isso dito e voltando-se ao filme, DAU Natasha foi o primeiro dos longas a ser disponibilizado, participando da mostra competitiva na Berlinale 2020, e é uma escolha curiosa como introdução a esse outro mundo paralelo. Curiosa porque o longa não explora de forma explícita essa absurda escala de produção como atrativo; na verdade, em sua duração de 145 minutos quase não existem cenas externas e sua maior parte se passa em aproximadamente cinco locações.
Segue-se aqui Natasha, administradora e cozinheira da cantina do instituto de pesquisa, como “personagem” principal em seus dias de trabalho e noites de bebida junto à sua colega mais nova, Olga. Há alguns acontecimentos importantes que marcam o filme como uma festa regada a álcool e peixe ou uma virada inesperada relacionada a investigações da KGB, mas não há uma estrutura ou pontos temáticos muito bem definidos sendo buscados aqui. Parece ser de mais interesse registrar momentos e permitir que eles se acumulem para criar significados e peso dramático.
Um cinema de momentos assim acaba variando entre o tedioso e o instigante, especialmente o início causa certo desinteresse, mas o filme parece ganhar força num efeito bola de neve e através de uma jornada emocional complicada, repleta de contradições, torna-se extremamente estimulante como estudo de personagem de Natasha. Particularmente o relacionamento e interações com Olga que passam por entre afeto de camaradas, amor fraterno, desprezo mútuo e ódio indignado, algumas vezes misturando tudo isso. É de uma lógica dramática muito própria e cheia de espontaneidade, dificilmente encontrada em ficções.
Essa espontaneidade é essencial aqui não só ao drama mas também ao filme de momento a momento e escorre por quase todos os elementos da obra, possibilitado pelo modo de produção. Seja na fotografia com a câmera única na mão ou pelas performances de pessoas que vivem seus papéis diariamente todos os dias. É interessante que o filme funcione tão bem ao não explicitar sua proposta única de produção, e se revele focando apenas nessas pessoas comendo, conversando, ficando bêbadas, transando e vivendo.
A reconstituição histórica funciona muito bem como plano de fundo, se permitindo quase esquecer a lógica de todo o projeto. A última parte do filme, no entanto, retoma e faz lembrar de forma inesperada e extremamente desagradável as polêmicas e os problemas com o projeto. A partir do envolvimento sexual de Natasha com o estrangeiro Luc Bigé, um cientista francês visitando o instituto, a protagonista acaba sendo retida e interrogada pela KGB.
Acaba-se revelando o lado mais vil do projeto, que, similar ao experimento de Stanford, tem as figuras responsáveis como polícia secreta entregando-se sem ressalvas àquele mundo entre o real e imaginário exercendo suas funções, incluindo tortura. A sequência de interrogatório é longa e começa sem maiores problemas, mas logo fica claro o contexto e o que surge é uma perturbação constante e progressiva pela tortura psicológica que, eventualmente se torna também física, para buscar quebrar e desumanizar a personagem que acompanhamos pelo filme.
Não há aqui também o véu da ficção para servir de desculpa aos atos completamente repulsivos realizados, gravados e exibidos. Tudo que é visto acontece e se torna ainda mais agoniante e incômodo por isso. Pode-se dizer que a sequência funciona aqui como uma forte denúncia da violência de um regime totalitário e da falta de liberdade permitida a seus cidadãos, inclusive através da cena final com o retorno ao cotidiano no próximo dia, mas um limite ético e moral foi ignorado ou completamente ultrapassado.
Propõe-se aqui como mais importante a possibilidade de sensação visceral ao público através do cinema na segurança do outro lado da tela, enquanto se utiliza do sofrimento real humano para isso. Um experimento de produção cinematográfica tão interessante e até mesmo com momentos belos, parece existir também para justificar os desejos vis de poder, autoridade e violência de alguns dos seus participantes e não só criar arte.
Claro que uma das formas de se relacionar com a arte é na busca pela experiência de novos sentimentos e sensações, mas participar como comprador de ingresso para assistir e tentar entender o sofrimento real humano também nos traz um desconforto com o qual ainda não é fácil de lidar.
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