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Festivais

44ª Mostra SP (2020) – #eagoraoque

Isto não é um filme

Por Ivonete Pinto | 25.10.2020 (domingo)

– na foto acima, Vladimir Safatle em cena de #eagoraoque

Rubens Rewald  estreou como diretor de longa-metragem com Corpo (codireção Rossana Foglia, 2007), um filme mais ou menos etéreo, mais ou menos poético. Depois veio Super Nada (com o cantor Jair Rodrigues como protagonista, 2012), calcado num humor inusitado. Neste #eagoraoque (2020), é como se o diretor estivesse em pleno desespero como brasileiro. Como se precisasse urgentemente gritar que este país está cindido,  é indispensável escolher um lado e ir para a guerra. Se puder  fazer curso de tiro, melhor.

A estratégia de Rewald foi chamar seu ex-professor e depois colega na USP (ele é professor na ECA, onde Bernardet se aposentou) para codirigir e corroteirizar  “algo” que tivesse como ponto de partida a conhecida provocação do mestre. Tal provocação recaía nos intelectuais – e por extensão em quem faz cinema – que são de esquerda, classe média, estão sempre querendo fazer a revolução, mas não têm vivência para além de sua classe social. Atualizando o debate, intrínseco em todas as  cenas de #eagoraoque: o intelectual branco de classe média que quer defender pessoas periféricas, negras, mas que está no mesmo papel que sempre esteve, defendendo o status quo e negligenciando as pautas identitárias.

Em #eagoraoque, os modos de resistência a isto tudo que está aí são debatidas com um convidado do projeto, Vladimir Safatle. Intelectual, classe média, branco, etc… O que o professor de filosofia da USP diz em inúmeros momentos não interessa muito. São, claro, pensamentos profundos, sofisticados,  sobre os quais estamos constantemente de acordo. Mas o que até aquele momento não era um filme, passa a ser quando Safatle é emparedado em seus argumentos (de intelectual, branco…) e vai até a comunidade de Campo Lindo debater com ativistas negros, entre eles uma mulher lésbica, para os quais tudo é blábláblá. A recusa ao debate é o ponto de inflexão do filme. É quando Safatle (intelectual, branco…) não tem mais argumentos, porque o diálogo lhe é negado. E é negado como gesto político, engajado, consciente e desiludido.

Antes, logo no início, quando não era um filme, uma outra sequência indicava que Safatle seria impiedosamente impactado. Ele está na plateia do espetáculo do Grupo Oficina, assistindo a uma versão de Roda Viva. Os atores  interpelam os espectadores, forçam sua participação. Um jovem ator negro com a cabeça de Safatle nas mãos repete a palavra “compre, compre, compre”, a um centímetro de seu rosto. A ação dura  intermináveis minutos e Safatle resiste fixando o olhar no ator, porque é do jogo. A câmera está fechada nos dois.  Mas em determinado momento, talvez querendo dizer que já tinha entendido o recado, Safatle coloca a mão na frente do jovem sinalizando que era suficiente. O ator não para. Só para quando uma ordem de dentro do espetáculo (um som) comanda.  Este trecho parece sugerir que uma das “mensagens” do filósofo Safatle –  a de que não basta pensar, é preciso agir -, estava ali cobrando coerência.

Cena de “#eagoraoque”

Há um sem fim de questionamentos, ideias que nos interpelam  neste 2020. O filme é de 2018, quando a ameaça era o #EleNão se eleger. A consciência de que o Brasil iria para o buraco era grande e Rewald e Jean-Claude acreditavam que só a resistência seria a saída. Nada de naif, nada de ir pra rua com cartazes (ou não só isto). Neste sentido, a figura de Jean-Claude atua como mosca na sopa incomodando uns e outros. Mais ou menos o que fez como intelectual a vida inteira de forma militante. No filme, funciona para empurrar os embates do “filho”  Safatle com  seus interlocutores e  lançar outras provocações. Jean-Claude força argumentos sobre a necessidade de sair do ambiente universitário  e dialogar com os sindicatos, o que hoje é visto como démodé, pífio até. Há muito os sindicatos perderam a força e quem lembra isto a ele é uma jovem  (Palomaris Mathias), que faz um contraponto entre os dois intelectuais.

Há muitos rostos desconhecidos no filme, grupos que Rewald e Jean-Claude foram buscar nos movimentos, nos coletivos,  nas ocupações. Cabe à personagem de Palomaris e do ator Valmir do Côco, denunciarem o fato  de que os sindicatos nunca colocaram em suas agendas políticas a inclusão  racial e de gênero, as tais pautas identitárias. A consciência de classe virou teoria vintage neste novo mundo. E agora, onde foram parar os metalúrgicos?

Parece que os grupos, colocados lado a lado, defendem lutas diferentes, e que ninguém entendeu que as pautas identitárias estão miscigenadas às pautas econômicas. É preciso notar, entretanto,  que o mal-estar  provocado pelo filme não é da mesma natureza do mal-estar de Toni Venturi e seu documentário Dentro da minha pele (2020). Quem faz o questionamento contido no título  #eagoraoque são os donos do filme, que conduzem uma  tentativa de diálogo frustrada com os que não são donos do filme. Quem está em crise é o homem branco, classe média, intelectual, etc. Suspeita-se que o mundo ficou mais complicado do que no tempo de Paulo Emilio, quando o intelectual podia estar na linha de frente…

Falar é fácil – As conversas de Palomaris com Safatle oxigenam a agenda e as certezas. Quando ele defende ideias antiquadas de empreendedorismo (é preciso roubar os bancos!), percebemos seu profundo descolamento  em relação à realidade das periferias. Falar é fácil. Neste exemplo, e nas memórias do idoso que acredita nos sindicatos, estariam os maiores anacronismos.

Jean-Claude (d) em cena de “#eagoraoque”

Jean-Claude vê ele próprio e Safatle  como alegorias. Personagens que não devem ser lidos em suas literalidades. Porém, há problemas de construção. Como personagens fabulares, são planos. Safatle exibe-se com seus dotes de tocador de piano e pai legal. Jean-Claude como o patrão justo que vai dar aumento espontâneo para a diarista. Podem ser verossimilhanças com os atores em questão, mas que não agregam ao que há de visceral na proposta do filme. Afinal, nem tudo pode ser debitado na conta das boas contradições.

Apesar disto, há duas situações no filme que merecem destaque justamente porque apontam complexidades:  a primeira, quando Jean-Claude aparece autoflagelando-se com uma faca, temos outras simbologias a se manifestarem. Cada espectador faz a sua leitura, de acordo com as informações extrafílmicas que têm, já que em interpretação imanente, as imagens não nos garantem nada. A segunda, é quando  Safatle protagoniza a quebra da quarta parede (encenação ou atitude do montador  Gustavo Aranda?). Ali temos o indício de uma dimensão que vai além do discurso. O intelectual que para defender seu personagem não pode concordar (em cena) com seu interlocutor. Que filme é este?

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