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Festivais

44ª Mostra SP (2020): Fábulas Ruins / Coronation

Infância roubada e o epicentro do fim do mundo

Por Luiz Joaquim | 25.10.2020 (domingo)

Coronation (Chi., 2020), de Ai Weiwei. 115 min. 12 anos. Apresentação especial.  

Este documentário é, talvez, o mais atual, o mais imediato dos títulos disponíveis pela 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Naquilo que ele revela, soa como um misto de ficção científica e filme de terror, mas o assustador é que estamos falando de um registro documental. Registro que revela ao mundo o que acontecia no marco zero do coronavírus, a cidade de Wuhan (China), a partir da qual a doença ganhou conhecimento público.

Com imagens registradas por diversos moradores de Wuhan, o diretor Weiwei coordenou da Itália a captação dos registros feitos no epicentro da doença. Numa cartela, o filme informa que o primeiro caso de Covid-19 foi registrado ali em 1º de dezembro, mas, por várias semanas, as autoridades negaram o grau de contaminação e de mortalidade do vírus. Só em 23 de janeiro é que foi estabelecido o lockdown na cidade.

Weiwei, que já chegou a ser preso pelo governo chinês e hoje reside no Reino Unido, nos apresenta em Coronation o dia-a-dia do início ao fim do lockdown em Wuhan.

O filme abre com imagens aéreas próprias de uma distopia, numa megalópole de infinitas avenidas vazias; apresenta os primeiros perrengues com sua população submetida a limitações para transitar pela cidade; os cuidados extremos em todos os procedimentos dos médicos; a fadiga desses profissionais; o sofrimento dos pacientes entubados à beira da morte; a construção “a jato” de hospitais; a chegada de centenas de médicos de outras regiões; a negação do chinês conservador que confia piamente no discurso e na eficiência do Partido Comunista Chinês no combate à doença; na burocracia e desinformação generalizada sobre como proceder para o cidadão velar seus mortos; e encerra com a dor dos que ficaram para testemunhar a partida dos familiares.

Cena de “Coronation”

Não é pouco, e Weiwei parece forçar a corda nessa trajetória de horror moderno, colocando o espectador dentro do esgotamento físico e mental que significa toda essa história. Sete meses depois de estabelecido o lockdown em Wuhan, em agosto de 2020, mais de 200 países somavam mais de 17 milhões de casos confirmados, além dos cerca de 700 mil óbitos. De resto, todos nós sabemos e vivemos, em alguma medida, os efeitos do que Coronation registrou em primeira mão.

A 44º Mostra ainda exibe, de Weiwei, Vivos, documentário no qual o realizador investiga o desaparecimento em 2014 de 43 estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa, no interior do México. O grupo desapareceu após uma abordagem policial na cidade de Iguala, e, informa o filme, apenas duas ossadas foram encontradas.

Fábulas Ruins (Favolacce, Ita., Sui., 2020), de Damiano e Fabio D’Innocenzo. 98 min. 16 anos. Competição Novos Diretos.

Cena de “Fábulas Ruins”

Premiado pelo roteiro no Festival de Berlim 2020, este trabalho dos Irmãos D’Innocenzo é um primor no que estabelece a si para conduzir uma “contação” de histórias que seriam apresentadas de forma banal em qualquer noticiário policial. No filme, as histórias, entrelaçadas, ganham ares fabulosos por se apresentarem pela ótica de um grupo de pré-adolescentes, ali pela puberdade, sob os cuidados (e descuidos) de pais inadequados.

Na inicial fala em off de um onisciente narrador, somos levados a acreditar que tudo parte de um real diário incompleto de uma menina, sobre o qual o narrador enredou sua conclusão nada infantil. A partir daí, somos avisados: “Este filme é inspirado numa história verídica. A história verídica é inspirada numa história falsa. A história falsa não é muito inspirada”.

O ambiente é um suposto idílico subúrbio romano, durante as férias quentes do verão italiano, quando as crianças têm mais tempo livre e estão sob um radar mais opressor de pais que, na ótica dos pequenos (e de nós, espectadores), não fazem sentido em sua violência psicológica e agressões físicas.

Cena de “Fábulas Ruins”

De fato, o contexto de opressão social e sexual contra os pequenos que é apresentado por Fábulas ruins é assustadoramente normalizado pelos adultos (que podem ser lidos aqui como os verdadeiros monstros dessa fábula), e confusamente testemunhado pelos jovens, que reagem ao seu modo para o despertar tardio dos pais.

Um filme para ver com olhos e ouvidos bem abertos, atentos aos pontilhados do enredo que os Irmãos D’Innocenzo costuram para essa macabra e tão reconhecível fábula.

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