44ª Mostra SP (2020) – Mães de Verdade
Naomi Kawase e a tensão japonesa
Por Ivonete Pinto | 23.10.2020 (sexta-feira)
Por se tratar de um filme de múltiplas leituras, é recomendável assumir alguns pontos de partida para examinar este mais recente título da diretora japonesa Naomi Kawase, Mães de verdade (Asa ga Kuru, 2020), presente na 44ª Mostra de São Paulo. Um deles é extrafílmico: Kawase foi ela própria uma criança adotada, criada pelos avós, e esta espécie de know-how sentimental transborda no enredo, incluindo a citação à Nara, sua cidade natal, contemplada no roteiro. Sua forma de mostrar com profundidade os dilemas e as contradições de quem adota, carregam algo de pessoal. Em seus filmes, sempre há os temas que circundam as perdas, como a da esposa em Floresta dos lamentos (2007 e da filha em busca do pai em O sorvete do papai, 1988). Em Mães de verdade, é uma mãe que busca pelo filho dado para adoção.
Também podemos nos deter na filmografia de Kawase ligada aos documentários, que são a deixa para percebermos como ela lida com as cenas em torno da entidade que trabalha com adoção no filme. Os personagens, as entrevistas, são de aparência documental, numa exímia mescla com a encenação. Kawase, não é preciso economia para afirmar, é uma mestre em orquestrar os elementos da linguagem do cinema. Sua filmografia equilibrada, com seus mais de 30 títulos e inúmeros prêmios internacionais, são a prova.
Apontando para outro aspecto, podemos ver Mães de Verdade (que aliás, entre todas as traduções aproximadas, nenhuma tem a ver com Asa ga Kuru) como um desdrama que evolui para o melodrama num crescendo quase musical.
Nas primeiras sequências somos apresentados ao casal Kiyokazu e Satoko (Arata Iura e Hiromi Nagasaku) que está decidindo adotar um bebê, após descobrir que o marido é infértil. Este fato, o que seria um drama em qualquer sociedade, no Japão ganha contornos mais graves em função de todo um código que envolve o papel de homens e mulheres na sociedade. Kiyokazu sente-se um derrotado e cabe à esposa todo o esforço para disfarçar a decepção, buscando superar a tristeza. No rosto da atriz, podemos ver este esforço em micro expressões e no baixo tom de voz . Afinal, não estamos em um dramalhão. A música – até aqui – comporta-se niponicamente, mantendo a inflexão de um desdrama de Ozu. Por sinal, difícil não pensarmos em Yasugiro Ozu em muitos momentos, pois estamos na seara do mestre de Era uma vez em tóquio, A rotina tem seu encanto e toda uma filmografia voltada à família. E reparem na homenagem do plano final de Mães de verdade, fechado no rosto de um menino. Puro Ozu.
Também temos a recorrência do que o diretor de fotografia de Ozu, Kiju Yoshida, chamou de “plano travesseiro”, que são os planos de paisagens (Ozu gostava de nuvens) para indicar passagem de tempo, para dar um descanso no que é contado, ou simplesmente funcionar como passagem de sentimentos. Em O anti-cinema de Yasujiro Ozu, Yoshida conta que Ozu reclamava que a vida dos japoneses não era cinematográfica, pois a mise-en-scène, quando realista, precisava ficar mostrando portas corrediças sendo abertas, sapatos sendo retirados para entrar nas casas, etc., o que gerava estagnação. No Japão atual, mais de meio século depois, os apartamentos têm portas ocidentais, as famílias não comem mais sentadas no chão, mas o saudável hábito da retirado dos sapatos persiste e Kawase não abre mão de mostrar este e outros gestos rotineiros.
A impressão que se tem é de um Japão que briga com o moderno, sem abandonar suas tradições. Há algo, porém, que não necessariamente tem a ver com ser moderno ou ser tradicional, algo que é muito próprio do comportamento dos japoneses. Embora corremos o risco de generalizar, é um consenso mesmo entre eles que o jeito tensionado de ser é uma característica da conduta que começa na infância. Uma extrema preocupação com o outro, onde há infinitos exemplos, o mais visível sendo a preocupação com não invadir o espaço do outro, de respeitar o próximo. Não à toa, o uso de máscara é comum desde sempre, e tem o objetivo de não transmitir gripes e resfriados (o contrário da lógica da pandemia em outros lugares, onde a máscara tem a função apenas, a priori, de se proteger). Pois este traço tensionado da cultura é o que de mais interessante explora o filme de Kawase e ele se concentra na primeira parte, antes da entrada de outros personagens (como a adolescente que engravida).
O casal, moderno, rende-se à ideia da adoção, prática não muito aceita no País. O problema é que a criança vai crescendo e os pais têm uma preocupação extremada, dando-lhe uma educação amorosa, mas sufocante. O incidente que leva o menino a ser acusado de ter empurrado um colega ganha uma dimensão épica. Por um lado, a preocupação com o não incomodar alguém é obsessiva; por outro, carrega uma contradição, já que os japoneses guiam-se por concepções morais arraigadas (o que explica no filme o tratamento dado à adolescente grávida, forçada a dar o bebê para adoção). E ainda há outra camada nesta angústia, principalmente da mãe. Não há diálogo que expresse esta ideia, mas podemos ler na face da personagem a dúvida sobre a origem da criança, onde poderia estar uma possível explicação para o hipotético gesto violento da parte dele.
A forma estressada com que o casal lida com o incidente flui como um desdrama, até uma virada que impõe outros procedimentos narrativos.
O desdrama dá lugar ao melodrama quando entra em cena a carta da mãe biológica ao seu filho. Em Viu o céu? (1995) também uma mãe biológica manda uma carta ao filho. Ou seja, estamos diante de um puro Kawase, seu universo, sua biografia que se enrosca em vários roteiros. Quanto mais conhecemos seus filmes, mais nos envolvemos com as histórias, que passam a ser também muito próximas de seus espectadores fiéis.
O que nos chama a atenção aqui é justamente como a grande contribuição, digamos, estético-sociológica deste filme, está mais no aspecto da tensão japonesa para lidar com o mundo. Ou seja, enquanto Kawase investe na tensão e nas ações minimalistas como expressão da sociedade, seu cinema cresce. Quando o filme envereda para o melodrama mais derramado, vai perdendo força.
Outra chave, agora ampliada e considerando o Japão como uma cinematografia periférica, nos leva a pensar que o conceito pode gerar controvérsias. Afinal, o país produziu quase 1.300 filmes em 2019 (1.300!). Entretanto, não é o caso de atentar para a capacidade produtiva por si só, mas para a capacidade de distribuição de filmes live-action. O que turbina a produção local é a indústria de animes, que deve ser computada em separado porque é um fenômeno que coloca o Japão como hegemônico e não periférico.
São poucos os diretores contemporâneos que não são da animação que rompem as barreiras hegemônicas (a própria Kawase, Hirokazu Kore-eda, Takeshi Kitano e meia dúzia mais). Mesmo Kawase, de reconhecida trajetória, costuma ficar restrita aos festivais. Em salas de cinema, melhoram as chance com lançamentos com apelo comercial (Visions, 2019, com Juliette Binoche, por exemplo). Se levarmos em conta o crescimento do streaming, sobretudo e principalmente com o advento da pandemia do coranavírus, é uma cinematografia que até tem encontrado maior recepção. Contudo, as plataformas (sobretudo e principalmente a Netflix) seguem sua dinâmica de privilegiar filmes norte-americanos e coproduções de língua inglesa baseadas em algoritmo, que dá uma falsa noção de que o espectador escolhe seus filmes. Infelizmente, não há dados disponíveis para avaliar o quanto um país como o Japão vê crescer sua audiência mundial através das plataformas, pois elas próprias escondem estes dados.
Provavelmente estamos todos de acordo de que o cinéfilo, ávido por conhecer outras culturas, atualmente tem mais ofertas comparada há poucos anos. Aprendemos que o Japão é um país patriarcal, com profundo senso moral. As pessoas sofrem se sua honra é colocada em dúvida; a família é pilastra da sociedade; o dever vem antes do direito; um nota de yen pedida no chão nunca será levada, etc., etc. Tudo isto está nos filmes, incluindo as animações, mas em Mães de verdade temos a perspectiva de uma mulher. Isto é, a despeito do machismo japonês, do imaginário das gueixas, o país pode se orgulhar de ter uma mulher gerando outro imaginário, onde as mulheres expõem seus pontos de vista sobre a cultura e ensinam a fazer cinema tanto quanto qualquer festejado cineasta. Mas esse já é outro assunto.
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