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Festivais

44ª Mostra SP (2020) – Miss Marx

Eleonor, uma peça da mais-valia

Por Ivonete Pinto | 26.10.2020 (segunda-feira)

A sensação inicial é de antipatia a um filme talhado para agradar as plateias ávidas pela celebração do empoderamento da mulher. Pega-se a filha do maior ícone teórico da esquerda, a transforma  em ativista charmosa,  adiciona-se uma pegada punk-rock já nos créditos iniciais e temos uma receita de filme moderninho. Passado os primeiros minutos, a sensação vai se dissipando, pois por mais que continue sendo um filme para atender a uma demanda do mercado – e todos os filmes o são, por minúsculo que seja o mercado  pretendido – é inegável que Miss Marx funciona como um documento de uma época. Não apenas  da personagem retratada, mas da nossa. Claro está que a perspectiva é do tempo atual, embora a produção seja bastante fiel aos acontecimentos históricos. Basta ler os créditos finais para ver a quantidade de cenas tiradas de cartas, textos e discursos da família e de amigos. Uma vida inteira documentada.

Miss Marx, da diretora italiana Susanna Nicchiarelli,  havia passado pelo Festival Veneza, e é uma coprodução com Itália e Bélgica (a equipe técnica majoritária é italiana). Desde seu anúncio na programação da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, virou uma das expectativas do evento.

Ainda que se passe na segunda metade do século 19, o filme, que tem como centro a filha mais jovem de Karl Marx, Eleonor,  estabelece um profícuo  diálogo com outro título político da Mostra,  #eagoraoque. No brasileiro,  o debate se dá em torno da estratégia para chegar nas populações que não são ouvidas, que não são vistas mas que são expropriadas de seus direitos. E não se trata apenas de retórica, tão vinculada a estes temas.

A exploração vira palavra-chave para entrar nestas discussões. É por causa dela que  Eleonor (Romola Garai), com O Capital embaixo do braço,  conheceu de perto a classe operária da Inglaterra, onde morava, e dos Estados Unidos, onde fez uma espécie de estágio. E se hoje parece  tão evidente onde estava a origem do mal no final do século 19 (o sistema capitalista só vinga com a exploração, com a mais-valia), as evidências desta primeira metade do século 21 tendem a se concentrar nos direitos humanos (onde as pautas identitárias germinam).

O tour que Eleonor faz nas fábricas denunciando o trabalho infantil e nas  profundezas dos casebres escuros dos proletários ingleses, é equivalente ao tour que Safatle faz na comunidade de Campo Lindo em #eagoraoque. A agenda é outra, mas algumas coisas continuam imexíveis.

Em Miss Marx, a temática se concentra no papel das mulheres e na tese de que elas foram feitas para cuidar dos outros. Têm sua existência ontológica ligada à função de servir. A preocupação com o proletariado, que vai muito além de uma preocupação econômica, seria prerrogativa dos homens, ao menos a dedicação full time para pensar  é sempre auto atribuída  aos homens.

A mais-valia, afinal, é o sistema empregado sobretudo  contra as mulheres, pois é seu tempo que é roubado em duplas jornadas de trabalho. E isto, nem a principal revolução depois da queda da bastilha, a bolchevique da Rússia, conseguiu resolver. Não interessava aos homens.

O filme de  Susanna Nicchiarelli (Nico, 1988, 2017) é bem didático no esforço de deixar clara a história de Eleonor; o roteiro explica a personagem para espectador por assim dizer. Quando Eleonor e o marido interpretam um trecho de Casa de bonecas, de Ibsen, o roteiro mastiga, desenha a personagem. O filme poderia acabar ali, não fosse alguma água ainda para correr até chegar ao desfecho trágico.

Romola Garai como Eleonor Marx em cena de “Miss Marx”.

Ver Eleonor discursar em Londres, com uma clareza até constrangedora, nos faz perguntar, o que deu errado? Por que uma mulher como ela não virou presidente, líder mundial? Por que ao menos não traduziu mais livros (ela é responsável pela tradução de Madame Bovary para o inglês, uma informação relevante para entender a cabeça de Eleonor)?  Há quem diga que é porque as mulheres nunca abriram mão de voltar para casa depois de um evento  e continuar cuidando dos outros. Eleonor tem plena consciência disto porque ela própria passou a vida cuidando de alguém, usando seu tempo para isto. Ela aglutinava seguidores, admiradores de sua inteligência e capacidade de oratória, mas tudo soava como uma concessão à filha de Marx. Mesmo o marido Edward Aveling  (Patrick Kennedy) não a levava a sério, nem como intelectual, tampouco como companheira.

Susanna Nicchiarelli, que assina também o roteiro, não faz vistas grossas ao comportamento masculino nas figuras do pai (aqueles detalhes desabonadores de sua conduta doméstica de Karl, que todos conhecemos) e do marido.

Falando assim, parece que o filme acaba com a reputação dos homens da vida de Eleonor só porque segue uma perspectiva feminista. Não seria justo. Nicchiarelli tem uma visão bastante afetuoso para com o personagem de Fiedrich Engels (John Gordon Sinclair).  O seu  enterro, por sinal,  com suas cinzas jogadas em um rio, rende uma das cenas mais belas do cinema. Todos os elementos, como a Internacional  cantada em francês pelos amigos no barco, e a fotografia esplêndida trazem uma carga de simbolismo importante. Não fosse Engels, é provável que não tivesse havido um Marx e, por extensão, sua filha. E Engels não foi só importante porque subsidiou a família de Marx. Em O jovem Karl Marx (Raoul Peck, 2017) esta importância fica patente para quem tem interesse em saber como Marx moldou seu interesse  pela classe operária, a partir da própria visão de Engels.

Certamente Engels não era perfeito e sobraria para ele se  o intuito da diretora fosse acabar com a moral  destes personagens históricos. Não está no filme, por exemplo, o  episódio de Paul Lafargue, o genro de Marx de sangue  negro, que mereceu comentários pouco progressistas por parte de Engels. Em Miss Marx, Paul é um personagem secundário e não representa uma “questão”  para os propósitos da tese citada.

No cômpito formal, o filme é cheio de incursões contemporâneas, como uma cena em que Eleonor, após fumar ópio, viaja no tempo. Outra delas é a recorrência a fotos de época (de várias épocas, pois o preto & branco é enganador). O recurso é lugar-comum para, documentalmente,  reforçar o quanto tudo aquilo aconteceu. A ficção precisa da força, da evidência do documentário para estabelecer sua verdade. Em Miss Marx, são imagens poderosas que cortam a ficção. Tão poderosas que deixam o tema do feminismo em segundo plano às vezes. Mas seria uma falsa leitura, já que são temas interligados até a medula.

Nota final: para não dizer que o título passou batido, o percebemos como uma ironia. Por questões de apelo comercial, é óbvio que trazer Marx para o título chama mais atenção. O resultado, porém é de uma ironia atroz,  porque reforça todas as queixas que a personagem faz ao se ver na sombra do pai. Triste destino o de Miss Eleonor.

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