44º Mostra SP (2020) – 16 Primaveras / Dias
Um romance corajoso, uma vida em busca de alento
Por Luiz Joaquim | 31.10.2020 (sábado)
Dezesseis primaveras (Seize Printemps, Fra. 2020) de Suzanne Lindon.73 min. 14 anos. Novos Diretores.
Filha de peixe… Suzanne Lindon, com 20 anos de idade e ganhando o mundo com este seu primeiro longa-metragem (escrito, dirigido e atuado pela própria), deixa registrado para quem quiser ver que sua ascendência lhe fez bem.
Fruto do casal de ótimos atores Vincent Lindon e Sandrine Kimberlain (vide Mademoiselle Chambon), Suzanne parece assumir com muita tranquilidade esse projeto corajoso. Corajoso porque vai na contramão da tendência atual, de um sociologizante cinema que parece querer estabelecer a si mesmo como o único válido para um mundo com tantos preconceitos e desigualdade social.
Para o enredo simples e cativante que criou, Suzanne interpreta Suzanne, personagem quatro anos mais nova que a diretora. A protagonista, entediada com os colegas do colégio e desinteressada dos rapazes de sua geração, percebe-se cada vez mais atraída por um homem mais velho. Ela sempre o vê em frente a um teatro quando está a caminho da escola.
Ele é Raphaël (Arnaud Valois), ator, de 35 anos, que ali ensaia uma peça. Quando percebe os olhares da jovem, o encantamento é recíproco. Mas há entre os dois um estranhamento e acanhamento próprio da habitual problemática diferença de 20 anos que os separam, sendo ela uma menor de idade.
O bonito (e raro em 2020) neste Dezesseis primaveras é que a diretora Suzanne não está interessada no que pode haver de legalmente criminoso nela se relacionar voluntariosamente com um homem mais velho, e sim no que significa para essa jovem experimentar uma primeira paixão. Paixão que, de partida, já seria condenada pela sociedade.
Mas a questão aqui, neste filme, é: não interessa o que a sociedade pense. Diferente do filme irmão Com licença eu vou à luta (1986, de Lui Farias) cuja força dramática está no confronto que a personagem adolescente de Fernanda Torres estabelece contra os pais para defender sua relação com um homem mais velho, em Dezesseis primaveras o que os outros pensam sobre esse assunto nem é algo que está no filme.
Suzanne toca toda sua história de amor sem compartilhá-la com ninguém, nem com a irmã mais velha, nem com as colegas. A essência da dramaturgia concentra-se no que há de alegre em cada pequena conquista da moça ao lado de sua primeira paixão. Suzanne, diretora e atriz, parece divertir-se com as estratégias femininas que a tímida Suzanne personagem quer aprender para chamar a atenção de Raphaël.
Com uma ou outra rápida inserção coreográfica no filme, para tentar traduzir o que ambos sentem e não conseguem dizer por convenções sociais, Dezesseis primaveras se apresenta como uma obra de fé de uma jovem artista numa relação incomum, sendo o personagem masculino um indivíduo gentil, generoso e respeitoso.
Para completar, Suzanne ainda se arrisca como cantora, e se sai bem interpretando a original canção homônima do filme que encerra os créditos. Dezesseis primaveras recebeu o selo Seleção Oficial Cannes 2020, passou no festival de Toronto e de San Sebastián. Atentem, portanto, a este novo nome que surge: Suzanne Lindon.
Dias (Rizi, Tai./Fra., 2020) de Tsai Ming-Liang. 127 min. 14 anos. Perspectiva Internacional
Para alguns espectadores, enquanto algum ator não começa a dizer a sua primeira fala no filme, é como se o filme ainda não tivesse iniciado. Só a partir do primeiro diálogo, estes espectadores param de pensar em si mesmos e passam a prestar atenção ao que está na sua frente.
Para estes espectadores, a relação com Dias, de Tsai Ming-Liang, poderia ser desastrosa. Nesse sentido, o aviso, ao início da exibição, informando que os raríssimos diálogos ali foram propositadamente não traduzidos é um recado bem dado para que se preste atenção na imagem. Do início ao fim. Ela será, por si só, eloquente. E que eloquência.
Na primeira imagem, o longo e estático plano fixo apresenta um solitário homem (Kang-Sheng Lee) sentado e imóvel, por trás de uma vidraça, com o olhar para o nada. No reflexo da vidraça, fundindo-se com a imagem do homem, vemos a natureza, essa sim, em movimento, barulhenta, numa chuva e vento que balançam as árvores. Há, portanto, vida lá fora, em contraponto ao absoluto estado de desolação ali dentro.
Noutro plano, Ming-Liang nos informa que o homem está doente. Em meio a uma paisagem exuberante, ele olha para a única árvore morta enquanto tentar aliviar sua crônica dor no pescoço. Apenas pela força das imagens, está dado, sem nenhuma fala, que este homem vive um mal físico e espiritual.
Um outro personagem é um jovem, igualmente solitário, que vive num humilde apartamento, a quem conhecemos preparando cuidadosamente sua comida. Mas Ming-Liang dedica mais espaço ao primeiro personagem. Ou melhor, ao seu martírio em tentar curar essa dor que consome seu corpo. Martírio que o ator Kang-Sheng assume tão bem, incluindo a extenuante sequência numa sessão de acupuntura com agulhas quentes.
Aqui nos deparamos com algo tocante pela forma como Ming-Liang registra o olhar de absoluto desamparo do homem após seu esforço no tratamento em busca de cura.
Ao longo do filme, Ming-Liang não nos apresenta uma cura, mas abre espaço para um encontro entre os dois homens, num quarto de hotel. Um encontro que funciona como uma espécie de purificação. É no contato entre os corpos desses dois estranhos que se dá o melhor remédio.
Dias não se esgota em sua eloquência, e a ausência da precisão das palavras é determinante para o sucesso do que se comunica tão bem. Mas não só isso, em Dias vemos reforçada a competência de Ming-Liang em transformar em filme, de maneira sedutora e respeitosa, um discurso amplo e ao mesmo tempo universal, reconhecível e, como se não bastasse, apresentando imagens tão marcantes, difíceis de esquecer (coisa também rara nos dias de hoje).
O crédito disso é totalmente de Ming-Liang, que em seus planos extensos (não longos, porque eles têm o tempo que precisam ter para proporcionar suficiente envolvimento do espectador), nos faz absorver todos os detalhes que o seu enquadramento oferece. E, com o cinema de Tsai Ming-Liang, há muito a apreender e a aprender.
Leia também texto de Ivonete Pinto sobre Dias, a partir da sessão no 70º Festival de Berlim.
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