9º Olhar (2020) – Sonho Californiano
Um Camboja singular
Por Ivonete Pinto | 14.10.2020 (quarta-feira)
Esqueça tudo o que você sabe – e espera ver – sobre o Camboja. Melancolia e delicadeza, são o mote que predomina em Sonho californiano (Califórnia Dreaming, 2019). Planos demorados em árvores iluminadas com um sol radiante e discretos sons de pássaros embalam o tom do filme rodado em um ressorte à beira-mar de luxo no Camboja. Sarita (Sarita Reth) está hospedada no hotel e em um passeio encontra Sak (Sou Manysak), funcionária do hotel em seu momento de folga. As duas jovens têm uma conversa sem importância, que resulta na ida delas para a casa de Sak. O clima bucólico, de poucas palavras, continua o mesmo e nunca há trilha musical, exceto uma entrada diegética de uma música popular. O tom é todo muito sóbrio, inclusive nas cores elegantes do bege e do branco. Sabemos pouco das duas, apenas que Sarita deve ir embora para Phom Penh no mesmo dia e Sak espera que um dia um velho estrangeiro lhe proponha casamento para tirá-la do país.
Por este resumo, pode-se ver que este não é exatamente o Kmer vermelho do nosso imaginário. O kmer de Pol Pot e o genocídio que matou entre 1,5 e 2,5 milhões de cambojanos nos recentes anos 1970. Não é o mesmo país onde Angelina Jolie adotou alguns de seus filhos, ou onde construiu hospital e contribuiu com recursos generosos para reerguer o país que ainda hoje é demasiadamente pobre. Também não o reconhecemos dos filmes de Rithy Pahn e suas reiteradas tentativas de não deixar a memória se apagar. A memória dos horrores do kmer em filmes como S21 – A Máquina de morte do Kmer Vermelho, Bophana e A imagem que falta.
Mas começa a ser o país de Rithy Panh se considerarmos que ele, ainda adolescente, depois de morar um campo de refugiados na Tailândia foi morar na França, se transformou em um cineasta de prestígio internacional e voltou ao Camboja para promover oficinas de cinema. Graça a ele, ao menos parte de sua iniciativa, esta geração que hoje pode filmar no Camboja teve acesso a algum conhecimento e algum meio de produção.
A jovem Sreylin Meas (30 anos), faz sua estreia no cinema assinando roteiro e direção do curta-metragem Sonho californiano. Antes, trabalhou como assistente de direção em produções para a TV (uma TV incipiente e precária, com quatro canais) e para produções internacionais de cinema.
A história é muito atual, ainda há julgamentos ocorrendo por conta do genocídio e nas ruas de Phnom Penh, como nos arredores de Siem Reap, pode-se ver orquestras de homens sem braço e sem perna que sobreviveram da explosão de minas deixadas pelos americanos na guerra do Vietnã (que atingiu toda região).
Ou seja, é um país marcado pela violência, que pode gerar um filme tão belo e delicado, talvez por isto, estranho.
A curta história das duas moças traz ecos mais do tailandês Apichatpong Weerasethakul (em especial, Eternamente sua e Hotel Mekong), do que de Rithy Panh, mas nem por isto deixa de ter um papel importante para o cinema, em particular do Camboja. O singelo curta de Sreylin Meas significa o surgimento de uma geração que consegue filmar no seu país e consegue se debruçar em outros temas que não o da história violenta. Naturalmente, há um pano de fundo que não pode ser desprezado, pois a funcionária do hotel não sonharia em casar com um velho estrangeiro se tudo estivesse bem. Já o motivo de tanta tristeza da hóspede é misterioso e atribui-se aos cânones do cinema contemporâneo que fala por enigmas. Ou, em outro viés, fala com lacunas que o espectador deve preencher.
Há uma atração sexual entre as duas, mas que não se consuma. O plano final tira a personagem principal de cena e deixa ao fundo um trapiche que daria num barco inexistente. Isto é, uma espécie de ponte que não leva a lugar algum. Portanto, ela volta e, quem sabe, vai ficar por ali, longe de Phnon Penh e seja lá o que for que a fez fugir de lá.
Um filme como este carrega ao menos duas funções: primeiro, da sua origem, segundo, do formato. Um filme de mulheres, que não faz menção direta ao genocídio, e com isto alarga nosso imaginário sobre o Camboja. Depois, porque reforça a ideia de que num curta é possível arriscar temas e abordagens que na metragem comercial seria mais difícil. A curadoria do 9º Olhar de Cinema cumpre assim seu objetivo de oxigenar a exibição nos festivais através de um programa de curtas empenhado em oferecer surpresas. Desigual na relevância, o pacote de curtas acaba sendo um punhado de cerejas em meio a programação.
Não à toa, o programa leva o nome de Outros Olhares e nele pode-se ver trabalhos que dialogam, como Chamas do sol, sobre duas garotas em um museu falando do conceito de amor verdadeiro. O programa ’04’, por exemplo, é bastante dedicado às mulheres, de diferentes culturas e perrengues existenciais, e nele se sobressai o curta do Camboja.
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