Não Vamos Pagar Nada
Uma estrutura e uma lógica televisiva e teatral para alcançar maiores ambições cinematográficas.
Por Felipe Berardo | 16.10.2020 (sexta-feira)
Não vamos pagar nada (Brasil, 2020) estreou semana passada como uma das escassas novas produções que circulam pelo circuito de cinema drive-in e pelo número limitado de salas de cinema já abertas no Brasil nesse período de pandemia e exatamente devido a essa condição atual, o filme já terá sua estreia nessa semana pelo Telecine tanto no canal televisivo Telecine Premium quanto no serviço de streaming da rede de canais. Ironicamente, o longa de comédia dirigido por João Fonseca, experiente diretor de teatro e de televisão em seu primeiro trabalho para o cinema, prende-se um pouco demais a estruturas e lógicas televisivas e teatrais para alcançar maiores ambições cinematográficas.
O filme é uma adaptação da peça italiana Non si paga, Non si paga! escrita pelo renomado dramaturgo Dario Fo que trata sobre questões de pobreza, fome e desemprego misturando críticas sociais com humor. O principal acontecimento do filme, por exemplo, envolve um protesto iniciado por parte de Antônia (Samantha Schmütz) quanto aos aumentos abusivos de preços do único mercado do bairro que acaba tornando-se um saque generalizado por parte de todos os outros clientes também indignados.
Depois disso, boa parte das piadas do longa estão na jornada de Antônia em esconder as mercadorias roubadas de seu marido orgulhoso, João (Edmilson Filho), que diz preferir morrer de fome a roubar e da polícia que é representada aqui pelas figuras sem nome do policial civil (Fernando Caruso) e do policial militar (Flavio Bauraqui). Essas piadas, inclusive, provavelmente são as parte que mais funcionam do filme com alguns momentos genuinamente engraçados como o contar da história da maldição de Santa Eulália ou a constante ideia de que azeite ou limão tomariam mais tragáveis comida para cachorro ou cabeças de galinha, mas ainda assim muitos momentos acabam tornando-se repetitivos, mesmo com a curta duração de 87 minutos do longa, principalmente pela insistência nas barrigas falsas usadas pelas personagens para esconder comida como principal piada por boa parte do tempo.
Até há um interesse inicial pela utilização de um símbolo como a gravidez e a comum ignorância masculina sobre essa para esconder o crime das mulheres, mas não demora muito até que a constante ameaça da revelação dos crimes pelas barrigas falsas acabe ficando desinteressante. A comédia ainda é consideravelmente competente, no entanto, os principais problemas da obra estão em seus pretendidos comentários políticos que tornam-se coadjuvantes sem força em relação ao humor, falhando em sua proposta de farsa cômica acessível a todos.
A figura exploradora do novo dono do mercado que põe a busca por lucros acima da capacidade de compra de itens essenciais como alimentos pela população local apenas é posta propriamente como vilanesca ao fim do filme quando é revelado que pratica atividades criminosas. Pior ainda é alcançar ao fim do filme, mesmo com essa revelação, um final feliz que propõe o serviço comunitário desse homem desprezível com um “banquete” semanal para 30 pessoas como forma de redenção. A proposta de uma resolução tão boba para o problema sistêmico da pobreza e da fome que comenta-se aqui beira a estupidez, utilizando até uma gravidez entre o casal principal sem dinheiro para comer como caminho para felicidade através do amor.
Até imageticamente também criam-se momentos politicamente questionáveis como o foco nas prateleiras completamente vazias do mercado após o saque como se 50 pessoas com fome fossem suficientes para esvaziar um estoque. O constante incômodo está, porém, na lógica desnecessariamente artificial com que a pobreza é ilustrada, através do uso de estúdios com uma direção de arte quase caricata. Seja por ignorância ou desconforto em criar imagens relacionadas a pobreza, não parece haver interesse em criar uma realidade cinematográfica coerente com a vida e dificuldades financeiras dos personagens aqui ou sequer refletir sobre a situação trágica proposta pelo roteiro.
Há alguns momentos em que uma consciência política é considerada mais seriamente, embora sem qualquer sutileza ou pontos instigantes com declarações muito explícitas faladas pelo personagem do policial militar sobre questões de machismo, por exemplo. Já é uma decisão questionável colocar uma figura tão representativa da violência institucionalizada brasileira como um PM como a figura moralmente sensata dentro do filme, sem nunca questionar muito a profissão além da alegação do personagem de apenas cumprir ordens, no entanto mais questionável ainda é a clareza dada em pautas mais burguesas como o combate ao machismo enquanto as pautas que deveriam ser essenciais ao filme como a miséria e a exploração financeira acabam tornando-se turvas.
Ao fim, Não vamos pagar nada é uma comédia curta e competente que atrapalha-se ao buscar meios significados de temas políticos que são bastante relevantes ao Brasil hoje com o aumento exponencial do preço da cesta básica. A utilização da comédia que deveria trabalhar com as pretensões políticas para impulsioná-las acaba sufocando-as e revelando o aparente desinteresse em possuir uma real consciência social, econômica e política, além de resgates contra produtivos dessas propostas.
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