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Festivais

19º INDIE (2020) – Todos os Barcos no Mar

Fé e religião entre tensões familiares: Um dos temas em filme na retrospectiva de Dan Sallitt

Por Felipe Berardo | 15.11.2020 (domingo)

Encerrou na quinta-feira (6) a 19º edição do Festival INDIE, dessa vez tendo acontecido online e de forma gratuita com sessões diárias e uma programação repleta de nomes aclamados do cinema internacional como Pedro Costa, Apichatpong Weerasethakul, Angela Schanelec, entre outros. Um desses outros nomes é o do crítico e cineasta independente estadunidense, Dan Sallitt, que recebe uma retrospectiva completa de sua longa, porém não muito prolífica carreira, que não costuma ser tão prontamente disponível para ser vista.

Todos os barcos no mar (All the ships at sea, EUA, 2004) é o terceiro longa-metragem do diretor e trata de um relacionamento entre duas irmãs há muito tempo afastadas que se reúnem após a volta para casa da caçula, Virginia (Edith Meeks). É uma sinopse difícil de resumir porque uma das maiores forças do filme está justamente nos diversos elementos de vida carregados pelas personagens e em suas caracterizações, sejam as memórias desagradáveis de suas infâncias em relação aos pais ou seja pela respectiva fé de cada um, com os papéis significativos que carregam em função disso.   

Dan Sallitt

Família e fé, inclusive, são os motes principais aqui com Virginia voltando à casa dos pais após envolver-se com um culto religioso e ser encontrada dormindo em bancos de parque em Ohio por assistentes sociais. Já Evelyn (Strawn Bovee), irmã mais velha e professora de teologia, sendo convencida pelos pais a passar tempo com a irmã na antiga cabana da família para tentar amenizar o estado de depressão de Virginia e também evitar o constante desconforto e desentendimento mútuo entre ela e os pais.

Ao ser descrito superficialmente, o filme assemelha-se em argumento a outras obras pela sua proposta de passar-se maioritariamente numa casa de campo isolada e com duas personagens não completamente confortáveis na companhia uma da outra, mas esse formato adotado devido ao baixíssimo orçamento revela-se de forma muito mais singular que na maioria de outros dramas independentes similares.

Não há grandes metáforas para guiar o filme nem interesse em utilizar o sobrenatural ou elementos de gênero para buscar significados, tudo é disposto com uma simplicidade controlada para servir às personagens e suas jornadas de cicatrização de traumas e de auto descoberta de falhas pessoais. Tudo acontecendo na curta duração de 64 minutos.

Esses pontos dramáticos trazidos à tona entre as duas irmãs são guiados com uma bela sensibilidade, principalmente nas atuações das atrizes que parecem estar constantemente afastando-se de emoções e mantendo diálogos e interações em tons pragmáticos para não revelar uma a outra as suas fraquezas. É do contraste entre essa separação emocional auto imposta das personagens e o cenário lúdico, cheio de memórias nostálgicas de suas infâncias que o filme tira sua maior força dramática.

No abismo entre restos de uma casa de árvore secreta que servia como refúgio na infância e as conversas cotidianas em meio a chá e tricô, discutidas sempre a uma distância segura, é que reside algo verdadeiro. Há algo especial e comovente nessa decisão quase contra intuitiva de negar em quase todas oportunidades qualquer catarse emocional para as personagens e espectador igualmente, afundando sentimentos que borbulham através de diálogos teóricos e ideológicos sobre família, fé e religião.

A obra reitera esses sentimentos formalmente também com essa mise-en-scène que raramente permite a aproximação das personagens e com planos afastados quando as emoções finalmente surgem à tona com choros, lamentações e orações dispostos em planos gerais ou através de portas e molduras. Até mesmo a imagem gravada com câmeras de vídeo não profissionais do início dos anos 2000 contribuem com um sentimento familiar e não permitindo que cores tornem-se particularmente expressivas, tudo parece estar a uma distância segura de qualquer emocionalidade.

Os diálogos, inclusive, são interessantes por si só, especialmente por tratar a fé e as dúvidas das personagens de forma tão respeitosa e empática, partindo de argumentos igualmente razoáveis e interessantes para ambos os lados de crença dispostos aqui. Revelam-se ainda mais interessantes, porém, ao servir como porta para compreender as crises pessoais vividas pelas personagens que têm suas respectivas religiões e traumas familiares como elementos fundamentais de suas identidades. 

 

Crises que são quase espelhadas entre as irmãs com Evelyn capaz de lidar com a dor infligida por seus pais através de seu viés analítico e crítico, porém tornando-se cada vez mais cética e perdendo a religião que já foi seu refúgio, enquanto Virginia é capaz de entregar-se quase por inteira à sua crença pela sua lógica emocional e intuitiva, mas não consegue desvincular-se das cicatrizes impostas pela família. Ao fim, ambas chegam à conclusões próprias tanto de redenção quanto de novas preocupações e voltam às suas vidas separadas uma da outra, parecendo reconhecer mais suas próprias naturezas com todas as virtudes e todos os pesares que surgem de si.

Há um elemento narrativo particular que é um tanto estranho durante o filme, o longa alterna entre um desabafo de Evelyn ao padre Joseph (Dylan McCormick) sobre sua experiência com a irmã mais nova e a experiência propriamente dita, colocando Evelyn quase como numa figura de narradora. É uma explicitação do artifício cinematográfico que não funciona tão bem numa obra que tem um naturalismo e uma organicidade muito própria, ainda que não seja exatamente realista.

O final. no entanto, acaba utilizando-se dessa ferramenta para criar uma ironia dramática particularmente dolorosa com a revelação do mais belo gesto de afeto e carinho exposto aqui como ato final de reconciliação que acaba tornando-se mais um segredo escondido entre irmãs por uma coincidência. É uma conclusão muito forte que quase justifica por si só a estrutura que não funciona tanto em outros momentos, deixando ao fim arrependimentos e a constante incapacidade de alcançar o próximo com suas palavras.

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