44ª Mostra de SP (2020) – Malmkrog
Um filme insuportável (só que não)
Por Ivonete Pinto | 04.11.2020 (quarta-feira)
Mais um título na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo chancelado pelo Festival de Berlim, Malmkrog (2020). Desta vez, uma experiência insuportável. Como é possível assistir até o final este filme com uma casa de cenário e meia dúzia de personagens que falam, falam, falam? Que masoquismo nos faz ficar 3 horas e 20 minutos em frente a uma tela doméstica, tendo ainda vários filmes da Mostra de SP para dar conta? Para começar, as referências.
Trata-se de um Cristi Puiu, cineasta romeno responsável por obras como A Morte do Sr. Lazarescu (2005) e Sieranevada (2016). Também a crítica social mesclada com preocupações metafísicas já rendeu bons filmes em torno da crise de uma certa elite russa, que morava na filosofia, tinha uma profunda percepção da humanidade, mas não sabia o que acontecia com os seus empregados. Outro motivo, a história é baseada no romance The three conversations, do filósofo e teólogo russo Vladimir Soloviev. Poderia ser do próprio Dostoievski , aquele que nos remete às obras-primas do gênero, como Os demônios. Não à toa, Soloviev, chegou a conviver com Dostoievski , impregnando-se de seu legado literário e espiritual no calor da hora.
O texto é recheado de uma visão de mundo niilista e religiosa ao mesmo tempo, com ênfase na (i)moralidade da guerra e em uma profunda crítica ao modo de vida da nobreza russa, com seus incontáveis empregados. Os empregados têm voz no filme? Não. Os empregados mal são notados pelos nobres e o tratamento que Puiu dá a eles concatena-se com o ponto de vista dos nobres. Ele não nos deixa ver o espaço ocupado pelos empregados. Eles “pertencem” aos ambientes do dono. Há pelo menos uma sequência em que esta perspectiva é demonstrada. É quando podemos ver os empregados em planos mais fechados, no momento em que um batalhão deles dá banho no patriarca enfermo. É no quarto dele que a cena se passa.
Rodado na região da Transilvânia, a abertura de Malmkrog, cujo título pode fazer referência à matéria-prima utilizada em uma fábrica do proprietário da casa, como a uma aldeia desta região da Romênia, mostra personagens em planos abertos passeando em um vasto jardim coberto de neve. Quando entram na mansão, um pastor passa em frente com suas ovelhas (pertencentes aquelas terras, logicamente). Uma das ovelhas não é branca. A câmara não faz close nela, ela sequer aparece inteira entre as outras, mas está lá para quem quiser ver e supor o que poderá acontecer nas próximas horas. Algo estaria fora da ordem. Mais adiante, outro pequeno indício que a câmera mostra em segundo plano: o proprietário reclama que os empregados da fábrica querem aumento de salário.
Até aí, a temática é universal e a adaptação do livro para o cinema nem precisa deslocar a história para outro lugar (trata-se de uma coprodução com Romênia, Suíça e outros países). Estamos na Rússia do livro de Soloviev do século 19 e as pessoas falam francês, língua que a elite usava no dia a dia entre si.
O resumo oficial do filme ajuda: um conde proprietário de terras, um político, uma condessa, um general e sua esposa se reúnem em uma espaçosa casa senhorial e discutem a morte, a guerra, o progresso e a moralidade. Com o passar do tempo, a discussão se torna mais séria e acalorada.
Na verdade, o adjetivo “acalorada” fica por conta da produção do filme, pois mesmo quando estão em desacordo nas intermináveis conversas sobre religião e filosofia, o tom não sobe muito. Argumentam e contra-argumentam sempre num tom empolado, em frases longas e intrincadas. O figurino nunca se descompõe.
Porém, os prenúncios da violência se infiltram novamente: um chá preparado fora dos padrões habituais, resulta em bofetadas.
Fora da ordem – Seguir os raciocínios dos personagens equivale, com o perdão da heresia, a fazer a via dolorosa de Cristo. A literatura eclesiástica é parte das conversas travadas pelos personagens, onde a luta do bem contra o mal rende longas reflexões. Não percebemos direito quando um tema engata em outro, mas lá pelas tantas alguém está defendendo uma certa eugenia. Uma teoria de seleção de raças, de superioridade europeia em relação aos povos africanos. E, de quebra, querem “civilizar a Turquia”. (Talvez um pensamento de Vladimir Soloviev mesmo, que era crítico do cristianismo de Bizâncio. Infelizmente, não há publicações no Brasil sobre ele, que tem uma expressiva obra. Para entender sua relação com a religião, há a tese de doutorado da PUC-SP, sobre cristianismo e modernidade em Soloviev, de Marcelo Consentino).
A estrutura de Malmkrog, não poderia ser diferente: se dá em capítulos, cada um com o nome de cada personagem, como que para organizar os temas e dar uma acordada no espectador. Entre candelabros com muitas velas, cadeiras de veludo e tapetes persas, vamos aos poucos percebendo que em algum momento o fora da ordem devia dar as caras para o filme fazer sentido.
[spoiler] Batendo nas duas horas de duração, uma música começa a ser ouvida e desnorteia a conversa à mesa de jantar, para lá de filosófica. Uma sineta é tocada para que um empregado venha resolver a situação. A música não para. Novamente a sineta, e nada. Até que se faz um silêncio preocupante seguido de uma correria. Levantam-se da mesa para ver o que ocorreu, e alguém está com uma arma atirando. Os empregados correm e gritam. O tiroteio atinge os convivas, dentro e fora de quadro. Os em quadro caem em frente à câmera. Ao final da curta cena, um vulto aparece no fundo do quadro. Como estamos num festival online, é possível retroceder na imagem: é um dos empregados e talvez seja o responsável pelos tiros. Fade out. Agora um som de sino de igreja toca e já estamos em outro capítulo.
Nesta virada espetacular (em um filme sustentado em diálogos, é mesmo algo grandioso), o capítulo seguinte inicia com um plano geral do jardim da mansão, na mesma profundidade de campo da cena de abertura, com a mesma neve ocupando a paisagem. Pessoas caminham ao fundo e o espectador conjectura que estão em luto, afinal alguém morreu naquele tiroteio, vimos os convidados do jantar serem atingidos.
[spoiler] Mas todos reaparecem conversando sobre os mesmos assuntos de antes. O incidente não é mencionado. Continuam a beber champagne.
A lógica farsesca se impõe, com seu niilismo e seu cinismo. A elite então, movida por um pressentimento, passa a reclamar sobre os dias que não estão mais tão claros. Falam de um temor, uma sensação de mau agouro e alguém lembra uma frase bíblica envolvendo o diabo, o rabo do diabo sobre o mundo criado, e concluem que é o sinal do Anticristo.
Cá para nós, vai demorar alguns anos ainda, mas o diabo chegaria em 1917 nesta casa.
O que o enredo tem a ver com nossos dias? O que Cristi Puiu quer dizer com esta adaptação tão árdua, que nos deixa exauridos?
Esta não é uma resposta, e nem poderia ser, mas uma leitura pode ficar em pé: por mais profundos que possam ser os pensamentos sobre Deus e o sentido da vida, as relações de classe vão se impor. Entretanto, o filme não estabelece finalidades tão simples. Em sua dialética, as contradições dentro da classe operária existem, sendo que as bofetadas são dadas pelo empregado superior no empregado subalterno. Considerando tudo isto, se o espectador conseguir vencer uma natural má vontade, poderá transformar o insuportável em experiência até estimulante.
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