44º MostraSP ’20 Nádia, Borboleta / Ricardo Reis
Uma mulher em mutação e um médico assombrado pelo próprio criador e por um país em transformação
Por Luiz Joaquim | 04.11.2020 (quarta-feira)
Nádia, borboleta (Nadia, Butterfly, Can., 2020), de Pascal Plante. 107 min. 18 anos. Perspectiva Internacional.
Assim como a borboleta, que chega bela e plena ao seu estágio final após uma longa metamorfose iniciada quando ainda lagarta, Nadia (Katerine Savard) também está em sua mais bela fase como atleta. Ela tem pouco mais de 20 anos e participa das Olimpíadas de Tóquio 2020 (evento, na realidade, cancelado pela pandemia do novo coronavirus). No torneio, a jovem compete pela equipe de natação do Canadá.
Mas, se fôssemos comparar a trajetória da protagonista com as fases pela qual passa o bichinho para chegar à vida adulta, o mais correto seria dizer que, no filme, acompanhamos Nadia em sua crisálida – o estágio em que o animal precisa concentrar-se em si mesmo, por semanas, para amadurecer, sair do casulo, abrir as asas e voar borboleta.
Nadia quer tornar-se adulta.
Tendo dedicado mais da metade da vida à natação, ela chegou ao seu ápice e é reconhecida como a mais competente de seu país nadando no estilo ‘borboleta’ – categoria que é certamente a mais desgastante deste esporte. E Nadia, borboleta deixa isso muito claro desde os primeiros e lindos planos subaquáticos com a atriz Savard em atividade na piscina.
A metáfora do casulo está, inclusive, poeticamente ilustrada no início do filme quando, após aquela que foi a última participação oficial de Nadia numa competição – com ela arrebatando para o Canadá uma conquista que não se via há 30 anos, – a atleta entra numa barraca individual, montada ao lado da piscina, para trocar de roupa. Diferente das colegas, em momento de absoluta alegria pela conquista no revezamento medley (quando cada uma delas se alternam nadando 100 metros em sua especialidade: costas, peito, borboleta e crawl), Nádia chora. Dalí daquela barraca, ela saíra diferente.
A partir de então, começa sua vida adulta, quando tomará decisões sozinhas, na qual planeja estudar medicina pelos próximos dez anos. É um caminho radicalmente contrário ao das amigas, que seguirão a carreira de atleta. Os contrastes entre esse ser que decide tomar as rédeas de sua vida contra a opção das colegas, que seguirão o rumo estabelecido para elas ainda na infância, são os pilares da história.
Mas o jovem diretor Pascal Plante não sobrecarrega o drama. Na verdade, com uma câmera na mesma instabilidade do status psicológico da protagonista, a fotografia do filme registra quase tudo como um documentário (parabéns às atrizes, inclusive, pelo naturalismo), com o enquadramento sempre muito próximo do rosto de Nádia. Reforça, assim, que o seu mundo interior é o que interessa aqui, e que a eloquência deste momento dorido pela metamorfose reside nos silêncios e na expressão facial da protagonista.
Outro aspecto atraente em Nádia, borboleta é a representação fidedigna com a qual mostra o que seria os bastidores dos atletas numa olimpíada. Todo a história se passa em Tóquio, durante a fictícia competição. A direção de arte é competente, assim como os efeitos especiais que mostram a torcida na plateia, sendo mesmo o mais atraente o que há de revelador sobre o que acontece nas vilas olímpicas após a conclusão das competições.
Em outras palavras, o que você acha que acontece num gigantesco condomínio fechado com centenas de jovens, no esplender de sua condição física, e já livres de compromissos? Não é difícil de imaginar, mas o que Nadia, borboleta apresenta pode surpreender a alguns.
O filme recebeu o selo da seleção oficial de Cannes 2020.
O ano da morte de Ricardo Reis (Por., 2020), de João Botelho. 128 min. 14 anos. Perspectiva Internacional.
“Deus, Pátria, Família”. É o que se vê grandemente estampado numa faixa exposta num comício político da Lisboa de 1936, em plena ascensão do fascismo e nazismo na Europa. Os dizeres evocam a Trilogia da Educação estabelecida pelo ditador de Portugal, Salazar (1889-1970). Estamos falando de uma sequência em O ano da morte de Ricardo Reis, adaptação levada ao cinema pelo realizador João Botelho, a partir do romance homônimo lançado em 1984 por José Saramago (1922-2010).
Se considerarmos o nosso contemporâneo contexto político no Brasil, é particularmente intrigante assistir a essa versão em imagens e sons construídos a partir de mais um primoroso texto do Nobel da Literatura. Nele está colocado, com a comicidade agridoce do escritor, um encontro pós-morte entre o criador Fernando Pessoa (na pele do ator Luís Lima Barreto) e a sua criatura, Ricardo Reis (vivido pelo nosso Chico Diaz).
No enredo, o médico Reis retorna a Lisboa no final de dezembro de 1935, um mês após a morte de Pessoa. Volta de uma estada de 16 anos no Rio de Janeiro e, em seu retorno à terrinha, é surpreendido por visitas do falecido Pessoa que lhe pauta as conversas pela literatura, pela política e pelo amor. O Senhor Doutor Reis também recebe visitas íntimas de Lídia (Catarina Wallenstein), uma criada do hotel onde se hospeda; e ainda mantém encontros amorosos com a jovem Marcenda (Victória Guerra).
Para essa história que alterna três instâncias dramáticas – as tensões e alegrias afetivas de Reis com suas moças; as conversas intelectualmente humoradas com Pessoa; e a política lisboeta, mergulhando no abismo do totalitarismo salazarista -, o diretor João Botelho e seu fotógrafo João Ribeiro criaram um visual que também alterna imagens em P&B ora suaves, ora difusas, ora contrastantes conforme o contexto respectivo daquelas instâncias.
O resultado, embalado por uma trilha sonora incidental com músicas dos anos 1930 (além da trilha sonora original), consegue nos colocar num lugar que aparenta mesmo estar há 90 anos de distância temporal do nosso hoje, mas, ao mesmo tempo, nos assusta pela contemporaneidade das ideias Salazaristas tão perceptíveis no atual governo federal do Brasil.
Há ainda o prazer de ver Chico Diaz vestindo confortavelmente um Ricardo Reis desafiador. Assumindo bem as sutilezas e nuances desse personagem igualmente complexo por ser confuso e determinado ao mesmo tempo. Por ser distinto, mas também patético. Por apresentar-se burguês, mas embrenhando-se com uma proletária. Por ser humano, enfim, e, portanto, um curioso quanto ao mistério da morte.
Em tempo: O diretor João Botelho esteve no Recife em 2013 por ocasião da 2ª Mostra do Cinema Português Contemporâneo, quando participou de debate sobre o seu Filme do desassossego (2010). Leia aqui.
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