Swallow
A hábil estreia de Carlo Mirabella-Davis como escritor e diretor em fascinante longa-metragem
Por Felipe Berardo | 09.11.2020 (segunda-feira)
Estreou exclusivamente pelo serviço de streaming MUBI, Swallow (EUA/França, 2019) ou em tradução livre “Engolir”, um drama com alguns elementos de gênero que conta a história de Hunter (Haley Bennett), uma esposa recém-casada e tornada dona de uma enorme casa presenteada pelos sogros, na qual fica presa pelo tédio e pela falta de autonomia de sua nova vida abastada. Após a descoberta de sua gravidez, o crescente desconforto revela-se na forma de um apetite anormal por diversos objetos não alimentares como bolas de gude e pequenos metais.
Essa ideia central soa peculiar o bastante para gerar estranheza, mas o filme é sempre tematicamente muito claro e direto, representando esse transtorno da protagonista como uma resposta direta à sua vida frustrante que impede quaisquer gratificações pessoais e a impõe numa posição de instrumento para construção familiar. A condição da personagem surge como forma de reconquistar sua autonomia através de pequenos e aleatórios atos de confronto ao controle opressor de seu cotidiano. Se Hunter não consegue exercer outras funções sociais que não a de esposa dona de casa e futura mãe, pelo menos quer de volta seu corpo, mesmo que através do aparentemente banal ou até irresponsável.
Essa clareza temática sem muito espaço para interpretações e sutilezas não incomoda pelo hábil controle do escritor e diretor, Carlo Mirabella-Davis, em como extrair novas cenas e situações dessas ideias dentro do período curto de 94 minutos proposto. Chama particularmente atenção o domínio impecável e constante de todos elementos fílmicos aqui, tudo demasiadamente calculado como pode se esperar de cineastas extremamente talentosos tecnicamente em primeiros projetos.
O maior exemplo disso é a fotografia de Katelin Arizmendi com suas composições equilibradas que abrem espaço para câmeras na mão e pouca profundidade de campo em momentos pontuais de estresse e conflito, além de registrar as texturas e detalhes necessários em close-ups com sua câmera, tudo sempre a serviço de reiterar as ideias da narrativa e dos personagens. Também seguem essa mesma lógica a montagem e a trilha sonora que trabalham dentro de formas comuns entre obras contemporâneas similares de suspenses e thrillers psicológicos, tudo extremamente competente, porém não particularmente inventivo ou inspirado.
Assim, a constante reiteração formal dos elementos narrativos do longa não criam tantos momentos excepcionais, mas torna Swallow um filme muito fácil de assistir e se apreciar, especialmente elevado pela ótima atuação da atriz principal, Haley Bennett, que consegue imbuir sua personagem com uma imensidade de emoção através de gestos sutis. Quase todos outros personagens aqui não são tratados de forma tão generosa e caem em papéis quase vilanescos, adequados a mensagem pretendida, mas não tão dramaticamente instigantes. Bennett, no entanto, consegue balancear uma atuação que cria um semblante sereno e quase perfeito, porém repleto de rachaduras que apenas a câmera parece conseguir captar.
Muito da força da primeira metade do filme, inclusive, origina-se da intérprete e dessa sua capacidade de representar o conflito psicológico que surge da completa falta de necessidade em todos os aspectos da vida de uma mulher que comenta do passado de aspirações artísticas e pouco tempo livre como outra vida. Já no último terço do filme há uma revelação inesperada sobre Hunter e abre-se um caminho mais complicado e surpreendente que sai das reiterações temáticas anteriores e explora possibilidades dramáticas próprias a personagem, acima de mensagens e significados.
Cria-se um último ato de consequências igualmente dolorosas e libertadoras que tem como ponto de partida a manipulação antiética de instituições psicológicas e psiquiátricas como última forma de controle e ultimato sobre mulheres pelo núcleo familiar. Um ponto que tem origem na história familiar do diretor que teve sua avó internada e lobotomizada não consensualmente pelo marido e família não como forma de tratar seus transtornos psicológicos, mas para controlar seus impulsos inconvenientes.
O filme não chega a tal ponto com a protagonista e permite ao menos um companheiro e ajudante em sua dor na figura de seu rígido enfermeiro sírio que é responsável por um dos poucos gestos de caridade e empatia do elenco de personagens. Em seguida, a protagonista passa por uma confrontação direta com traumas familiares surgidos de seu próprio nascimento que tentou enterrar, mas carregou consigo por todo esse tempo logo abaixo da superfície. Tudo é tratado com uma seriedade e honestidade que atravessam o desconforto sem comprometer-se de maneira louvável, alcançando redenções e crescimento pessoal de locais lógicos, porém inesperados.
Ao fim, Swallow revela-se não só como uma estreia em longa-metragem extremamente competente dentro de suas próprias propostas, mas também surpreendentemente confiante num terceiro ato que já mostra uma maturidade interessante de Mirabella-Davis como cineasta ao afastar-se de suas metáforas para trabalhar com pontos dramáticos mais concretos e espinhosos. O diretor não mostra tanto aqui seu interesse em filmes de gênero quanto seu companheiro de classe de ensino médio que também viria a se tornar cineasta, Jordan Peele, diretor de Corra! e Nós, mas cita constantemente em entrevistas sua paixão pelo terror e deve ser interessante ver o futuro de sua carreira.
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