53º Brasília (2020) – Por onde anda Makunaíma?
Para entender Macunaíma. Ou não… Reflexões necessárias de Ivonete Pinto pelo filme de Rodrigo Séllos
Por Ivonete Pinto | 30.12.2020 (quarta-feira)
Encontrar as inúmeras facetas que formam este caleidoscópio deve ter sido o maior desafio de Por onde anda Makunaíma? (Rodrigo Séllos, 2020). Contou para isto, a expertise do produtor de Roraima Thiago Briglia (Platô Filmes), que já havia dirigido o documentário Nas trilhas de Makunaima (2007). O filme é uma coprodução com a paulista Boulevard Filmes.
Vencedor do 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro [veja, abaixo, relação de todos os contemplados desta edição], este documentário aposta em uma organização que privilegia uma certa cronologia, tentando situar o espectador na história do povo amazônico, cujo epicentro envolve o Monte Roraima e as fronteiras com a Venezuela e a Guiana Inglesa. O ponto de partida é o livro de Mário de Andrade, de 1928, e segue através do filme Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969), da peça homônima de Antunes Filho, que estreou em 1978 e percorreu boa parte do Brasil, e do filme Exu-Piá, coração de Macunaíma (Paulo Veríssimo, 1986).
O documentário também menciona que o pesquisador alemão Theodor Koch-Grünberg, entre 1911 e 1913 foi o primeiro a estudar a lenda em um texto que fala do mito de um povo indígena chamado Makunaima, que seria o responsável pela “maldade no mundo”. Constituído de várias histórias, tem o anti-herói sem caráter como protagonista e isto empolgou Mário de Andrade naquele fértil momento da cultura brasileira em torno do movimento modernista. À natureza coletada/inventada de um pesquisador alemão, somou-se o desejo romântico de compreensão da nossa brasilidade.
O documentário, que estreia em 2021 no Canal Curta, esforça-se por agregar a influência do folclore indígena, africano e europeu que alimenta as lendas, em uma montagem ágil, em que prevalece uma narração no espírito do personagem central, em cima de imagens sobretudo do filme de Joaquim Pedro, não por acaso as que o espectador tem mais familiaridade.
Se Mário de Andrade turbinou os relatos de Koch-Grünberg com criatividade e um tempero de malandragem, o documentário parece entender que esta vertente é a que mais fará o espectador ter interesse pelo filme. Ao mesmo tempo que assume a necessidade de oferecer um painel de informações sobre a história, foge do academicismo e enaltece o tom de comédia maluca que tornou filme e peça icônicos no seu tempo. É fragrante o cabedal de dados construído pela montagem. São depoimentos, projeções com fotos e imagens em movimento cujo efeito resulta em uma espécie de interação com os personagens míticos. A projeção do filme de Joaquim Pedro em um prédio no Rio de Janeiro é um ponto alto do documentário.
Para juntar passado e presente, a produção recorre a depoimentos de atores que atuaram nos filmes e na peça, como Cacá Carvalho (que fez Macunaíma na peça e no filme de 1986), Joana Fomm e Paulo José. Aliás, o ator gaúcho tem presença mágica quando se misturam as imagens do Macunaíma de Joaquim Pedro e a sua atual, que luta bravamente contra a doença de Parkinson.
Louvar o “anti-herói preguiçoso e sem caráter” como ficou conhecido o personagem, pode render controvérsias. Afinal, numa perspectiva ética, qual o sentido? Numa perspectiva histórica, qual o objetivo? Há vários estudos em torno do livro de Mário de Andrade que investigam a lenda de Macunaíma, relacionando-a aos conflitos de nossa formação, inclusive os psicanalíticos. O colonizador europeu confrontou-se com o desconhecido (o índio), resultando daí a “sombra reprimida do ‘outro’” (Gambini, “Espelho índio: a formação da alma brasileira”, 2000). A resposta do povo makunaíma, em reação a toda sorte de violência sofrida, teria vindo através da maldade e da preguiça. Em suma, as teses apontam para um movimento de resistência mental da cultura indígena através da criatividade, da alegria e da não submissão.
Por onde anda Makunaíma vai mais longe em um arriscado pulo do gato: casa o passado com pautas atuais. Em depoimentos, várias mulheres indígenas, como América, fazem um perfil de Macunaíma. A velhinha de mais de 90 anos puxa da memória histórias incríveis e as combina com sua nova crença, a religião cristã, onde mistura pai, filho e espírito santo. Há mais de um século que a igreja católica entra/invade as comunidades e há décadas que as pentecostais seguiram o mesmo caminho cometendo o proselitismo.
A influência, por vezes devastadora da religião nas comunidades indígenas (ver o magnífico Ex-Pajé, de Luiz Bolognesi, 2018), revela que as igrejas têm um papel nefasto em querer substituir mitologias e imporem valores. O espírito iconoclasta de Macunaína inspira a pensar que há também uma tendência dos brancos a quererem deixar o índio num lugar do passado, intocável. Personagens como América nos dizem que diversos povos originários hoje repensam suas práticas; repensam, por exemplo, o machismo que alguns deles carregam. Com isto, suspeita-se que o documentário também almeje atualizar Macunaíma e não ficar preso às circunstâncias do seu entorno histórico.
Prova disto é que apresenta várias mulheres no centro do enredo, incorporando uma visão contemporânea, aspecto que nem Mário de Andrade, nem Joaquim Pedro, nem Antunes Filho observavam em suas épocas. Não foram impelidos a pensar o papel das mulheres na história. O personagem da índia Sofara (Joana Fomm) era importante, mas periférico, o da guerrilheira Cy, vivida por Dina Sfat, igualmente.
Sem falar que o processo de branqueamento pelo qual passa Macunaíma (de Grande Othelo para Paulo José), hoje ganharia outras interpretações. Para ficar na análise proposta por Robert Stam em “Multiculturalismo tropical: uma história comparativa da raça na cultura e no cinema brasileiros” (2008), temos esta transformação em Macunaíma, o filme, eliminando o índio como etapa intermediária e, com isto, optando pela paródia. Este elemento de um imaginário popular racista por si só mereceria vários documentários, pois um não dá conta.
Num aspecto mais geral, podemos perguntar se a estratégia do filme, ao nos trazer lendas, mitos, tradições funciona para forjar o caráter do brasileiro atual. A obra de Mário de Andrade não é realista. Ironia e surrealismo dão o tom. Em oposição a Peri, o herói de José de Alencar de O guarani, Macunaíma é um pândego, inconfiável. Na forma do romance modernista o narrador é figura intrincada, tornando difícil saber quem está narrando (até um papagaio é o narrador) e ali talvez esteja uma chave para entrar no “caráter” do brasileiro com tendência ao caótico. Por onde anda Makunaíma? embaralha múltiplos componentes na cena, é sem dúvida um registro bem-vindo e busca ser orgânico com seu material original; ou seja, busca ser também original. E em meio à batelada de estímulos, somos levados a indagar não por onde anda Makunaima, mas qual Macunaíma nos interessa ser.
Conheça todos os contemplados no 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
- Melhor filme:”Por Onde Anda Makunaíma?”, de Rodrigo Séllos
- Prêmio especial do júri de montagemde “A Luz de Mario Carneiro”, de Betse de Paula
- Prêmio especial de júri de atuação:”Ivan, O TerrírVel”, de Mario Abbade
Mostra Oficial – Curta
- Melhor filme:”República”, de Grace Passô
- Melhor direção: “A Morte Branca do Feiticeiro Negro”, de Rodrigo Ribeiro
- Melhor som: “Distopia”, de Lilih Curi
- Melhor montagem: Tamiris Tertuliano, em “Pausa Para o Café”
- Melhor direção de arte: Cris Quaresma, em “Quanto Pesa”
- Melhor roteiro: Tamiris Tertuliano e William de Oliveira, em”Pausa Para o Café”
- Melhor fotografia:Gustavo Pessoa, em “Inabitável”
- Melhor atuação: Maya e Rosana Stavis, em “Pausa Para o Café”
- Prêmio especial do júri: “Tradicional Família Brasileira KATU”, de Rodrigo Sena
- Menção honrosa:Elenco de Inabitável (Luciana Souza, Sophia William, Erlene Melo, Laís Vieira, Val Júnior, Carlos Eduardo Ferraz e Eduarda Lemos)
Categorias da crítica
- Prêmio Cosme Alves Netto – Anistia Internacional Brasil:”A Tradicional Família Brasileira KATU” de Rodrigo Sena
- Prêmio Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) de melhor curta-metragem:”República”, de Grace Passô
- Prêmio Abraccine de melhor longa-metragem:”Entre Nós Talvez Estejam Multidões” de Pedro Maia de Brito e Aiano Bemfica
- O Júri Abraccine foi formado por, em ordem alfabética, André Dib, Marcelo Lyra e Yale Gontijo.
- Prêmio Canal Brasil de Curtas: “A Morte Branca do Feiticeiro Negro”, de Rodrigo Ribeiro
Júri Popular
- Melhor longa-metragem:”Longe do Paraíso”, de Orlando Senna
- Melhor curta-metragem: “Noite de Seresta”, de Munis Filho e Sávio Fernandes
- Melhor longa da Mostra Brasília: “Candango: Memórias do Festival”, de Lino Meireles
- Melhor curta-metragem da Mostra Brasília:”Eric”, de Letícia Castanheira
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