Beginning
Em nome do pai, do filho e do policial
Por Luiz Joaquim | 30.01.2021 (sábado)
É provável que hoje você tenha dificuldade para pronunciar corretamente o sobrenome da diretora georgina Dea Kulumbegashvili mas, anote aí, a julgar pelo seu primeiro longa-metragem – Beginning (Georgia; Fra., 2020) – Kulumbegashvili será facilmente falado no futuro, ao menos pelos cinéfilos atentos.
Atenção é o que se pede aqui para Beginning, cujo espectador brasileiro pode acessar, desde ontem (29), pelo streaming MUBI. O próprio canal online está promovendo a estreia como uma das mais importantes desse ano que inicia. E é mesmo. No meio do apelo publicitário feito pelo MUBI, comumente sóbrio, relaciona-se Beginning com outras pérolas feitas por um dos deuses da cinematografia contemporânea, Michael Haneke, e com o intrigante trabalho do mexicano Carlos Reygadas (que, a propósito, é um dos produtores executivos desde debut de Kulumbegashvili).
É questionável a comparação com o cinema de Haneke, ainda que os longos e estáticos planos sejam o ponto de partida de comparação feito pelo anúncio da plataforma virtual. É que a jovem diretora da pequena Georgia (na verdade, nascida na Rússia) elabora uma saga para a sua Yana (Ia Sukhitashvili) um traçado de reconhecível e imediato entendimento do espectador quanto ao destino desta protagonista, ao contrário do que costuma fazer o cineasta austríaco.
Importante dizer que este “reconhecível e imediato entendimento do espectador” não está aqui anunciado como demérito, mas apenas como uma opção narrativa a qual, a propósito, Kulumbegashvili apresenta um domínio assombroso. Uma maturidade rara de encontrar em ‘primeiros filmes’ – muito embora a cineasta já não seja uma desconhecida dos grandes festivais. Com o seu primeiro curta-metragem, Ukhilavi sivrtseebi, conconrreu a Palma de Ouro em Cannes 2014.
A propósito de Cannes, Beginning teria sido exibido na competição oficial da croisette française em 2020 caso não tivesse surgido a pandemia mundial da nova Covid-19 (relembre aqui os selecionados de Cannes 2020). Não exibiu na França mas na Espanha sim e, no Festival de San Sebastian, levou quatro dos principais prêmios: filme, direção, roteiro e obviamente (para quem viu o filme) o de melhor atriz para Ia Sukhitashvili. Isto por um júri oficial formado por gente como Luca Guadagnino e Michel Franco.
Guadagnino, inclusive, entrevista Kulumbegashvili – no que se revela uma pequena aula sobre criação cinematográfica – no arquivo que o MUBI disponibiliza. O bate-papo virtual dura cerca de 30 minutos e inicia logo após o encerramento dos créditos finais do filme.
O FILME – Os primeiros nove minutos de Beginning nos é apresentado por um único plano. Com uma câmera estática ao fundo de uma igreja onde está para iniciar um culto das Testemunhas de Jeová. A tensão daquele ambiente é dada de imediato, quando acontece a primeira interação humana, com Yana castigando crianças por terem se sujado jogando futebol.
Com a acomodação dos fieis para a palestra do pastor, que é também marido de Yana, as luzes vão mudando no ambiente e, com ela, a atmosfera, que fica mais densa enquanto a pregação traz a passagem bíblica de Abraão, testado em sua fé por Jeová, que o ordena matar seu próprio filho.
O que se segue na sequência dentro da igreja, com todo o arco dramático ocorrendo neste longo plano fixo, é um ato criminoso e inesperado. Com tudo sendo conduzido de forma a tensionar o espectador com uma precisão impressionante.
Nestes magnéticos nove minutos, Kulumbegashvili sintetiza bem o que virá na sequência. A sua protagonista, uma ex-atriz que se casou com um pastor e que tornou-se mãe de um garoto com cerca de oito anos, está sufocada e refém de uma vida que, em suas palavras: “passa e é como se eu não estivesse nela”.
Kulumbegashvili representa essa prisão a partir dos próprios planos fechados e estáticos, e longos, mas na medida correta para que seu espectador se conecte e explore como bem entender essa personagem tão espetacularmente difusa e complexa que é Yana – defendida com a maestria que só atrizes gigantes conseguem.
O filme entrega apenas quatro tomadas com movimento de câmera. Todas suaves e quase todas com uma função de ênfase dramática muito específica. Numa delas, quando Yana sofre abuso psicológico e sexual de um suposto policial, é este movimento de câmera que anuncia a revelação de uma imagem para algo medonho que o espectador previamente já criou na sua imaginação. A estratégia aqui é coisa de mestre. No caso, mestra.
Beginning, a propósito, comete a audácia de encenar, em 2020, um estupro em tempo real. Numa cena, como bem disse Guadagnino na entrevista com a diretora, quase insuportável. Há cinco anos, a partir da repercussão de Elle, de Paul Verhoeven, a necessidade de encenações de estupro passaram a ser questionadas pelas mulheres (leia texto de Juliana Soares Lima sobre Elle clicando aqui). Nesse sentido, vale a pena ouvir, na entrevista, a justificativa da jovem Kulumbegashvili, que cresceu cercada por uma família formada por mulheres.
A propósito, no início da transmissão de Beginning, o MUBI informa de que ali há cenas de encenação sexual que são fortes e podem causar algum distúrbio no espectador. Aviso dado. Mas também é preciso avisar sobre esta obra como o primogênito de uma cineasta que, certamente, será celebrada no futuro. Seja seu sobrenome impronunciável ou não.
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