Doutor Jivago (1965)
A força e a fragilidade da poesia em tempos de guerra
Por Luiz Joaquim | 21.01.2021 (quinta-feira)
Já dono de dois Oscars, conquistados como melhor diretor pelos épicos A ponte do rio Kwai (1957) e Lawrence da Arabia (1962), o cineasta inglês David Lean, no ano de 1965, corria com um outro trabalho que viria sedimentar ainda mais a sua sagrada posição de cineasta da elegância e grandiloquência para contar a história de personagens fortes tendo como pano de fundo circunstâncias históricas.
A nova obra era Douto Jivago (GB, Ita., EUA), com a qual o todo poderoso Carlo Ponti, da MGM, trabalhou nos EUA seu lançamento às pressas, em 22 de dezembro daquele ano, para que a produção disputasse o Oscar de 1966.
O esforço foi frutífero. A produção de USS 11 milhões faturou dez vezes mais do valor investido (se ajustado para hoje, seria algo próximo a 1,1 bilhão de dólares), e rendeu cinco estatuetas do homenzinho dourado. Lean não levou seu terceiro troféu (Robert Wiser o arrebatou por A noviça rebelde), mas Jivago foi contemplado pelo roteiro de Robert Bolt (adaptado do homônimo romance do soviético Boris Pasternak); pela fotografia de Freddie Young; pela direção de arte do trio John Box, Terence Marsh e Dario Simoni; pelo figurino de Phyllis Dalton; e pela trilha sonora de Maurice Jarré, com o seu inesquecível Tema de Lara.
O sucesso, porém, não foi absoluto. A crítica da ocasião dividiu-se, ora apontando o filme por aquilo que teria de excessivo em tom romântico, ora lembrando que Lean foi, mais uma vez, competente na construção superlativa de um filme ao transpor para o cinema essa gigante obra russa – que rendeu a Pasternak o Nobel da Literatura em 1957 (aceito e depois renegado, por pressão do governo soviético que via na obra uma propaganda inversa aos preceitos do regime socialista).
O FILME – Ultraromântico ou não, rever Doutor Jivago em 2021, quase seis décadas após sua concepção, é revisitar um momento da cinematografia mundial em que títulos como esse já começavam a ser questionados pelo que significavam com seus vultosos investimentos para contar “apenas” uma densa história de amor (ainda que sob um fundo histórico avassalador em seus efeitos), quando outros assuntos, principalmente os políticos daquele presente, urgiam por espaço na mídia.
E ainda, o cinema norte-americano também vinha abrindo espaço às idiossincrasias da juventude (e ganhando atenção e respaldo com isso), há mais de dez anos – para começar, veja O selvagem (1953), de László Benedek.
É, porém, inegável como o filme, hoje, soa claramente como a melhor junção daquilo que Lean criava cinematograficamente em tons épicos (e assim ele entrou para a história) com o tema sobre o qual ele anteriormente se debruçava e que foi responsável por lançá-lo ao mundo, no início da carreira. Estamos falando de amores impossíveis, tais quais conhecemos por diamantes do quilate de Desencanto (1945) e Grandes esperanças (1946).
Nas deliciosas 3 horas e 17 minutos de duração de Doutor Jivago, somos levados a entender o conturbado contexto do período pré, durante e pós Revolução Russa (1917), acompanhando a trajetória do médico e poeta Yuri Jivago (Omar Sharif) – criado por parentes aristocratas, que se casa com Tonya (Geraldine Chaplin) -; e da trajetória da filha de uma pobre costureira, Lara (Julie Christie) que, a contragosto, aos 17 anos de idade, ganha guarida social do amante de sua mãe, o influente Victor Komarovsky (Rod Steiger), mas tendo ela de se submeter a abusos sexuais.
Antes da derrubada da monarquia russa e a tomada dos Bolchevique, Jivago se dividia entre a sua formação na medicina (obstinado que é em ajudar o próximo) com a escrita de suas poesias (sensível que é à beleza que o cerca) – sendo, inclusive, reconhecido em Paris como um dos cinco melhores autores de sua época.
Já Lara, cuidava de planejar seu relacionamento amoroso com o idealista e revolucionário Pasha Strelnikoff (Tom Courtenay), enquanto tentava administrar o vilipêndio que sofria pelas mãos de Komarovsky.
É ainda no período pré-revolução, quando presta assistência médica à mãe de Lara e quando, noutra ocasião, presencia um atentando contra Victor Komarovsky, que o jovem médico tem o primeiro deslumbramento com a desamparada proletária.
Os (des)caminhos dos dois irão se cruzar várias vezes ao longo da extensa União Soviética antes da consumação do amor, sendo os seis meses de trabalho compulsório num hospital improvisado na fronteira da Ucrânia durante a Revolução Russa – ele como médico, ela como sua enfermeira – que a convicção de Jivago no amor que sente por Lara sai da natureza do velado e vai para o explícito (aos olhos do espectador).
Há aqui, na expressão cinematográfica desse sentimento, uma das melhores composições visuais do filme (entre várias dessas “melhores composições”).
O momento da despedida se aproxima. Lara, resignada e decidida a voltar a Moscou para reencontrar a filha pequena, engoma roupa, cabisbaixa, enquanto Jivago suscita a possibilidade de eles formarem um casal.
Aqui, num maestral desenho de luz, o ator Omar Sharif permanece o tempo inteiro sob a sombra. Dele, temos apenas seu contorno, enquanto vemos Christie, dividindo o mesmo quadro com Sharif, com ela sob uma luz intensa que a ilumina em sua integridade. Ela rejeita a insinuação de Jivago e, ainda, sugere que ele mantenha sua virtude em prol da esposa Tonya.
Antes que acusem de démodé ou moralista a sugestão da escuridão sobre Jivago (ou quando muito, com um pequeno feixe de luz sobre seus olhos), por desejar outra mulher fora do casamento, é preciso deixa claro que tal composição tem mais aproximação com a ideia de que, naquele momento, o personagem não se compreende.
Jivago é apresentado constantemente como um homem bom – seja pelos seus atos, seja pela voz dos interlocutores – e, ali, vive um conflito moral profundo. Daí a escuridão que lhe cobre.
A propósito, essa riqueza de belas sugestões visuais, como que prestando confiança na inteligência e sensibilidade do espectador (cada vez mais difícil de encontrar atualmente nos filmes), permeia todo Doutor Jivago.
A começar pelo diálogo tenso e eloquente, mas totalmente silencioso, de olhares, entre Lara e Victor Komarovsky, quando este emoldura seu rosto com um vel; ou quando Lara, sem palavras pronunciadas, encerra o relacionamento com Pasha, sendo uma vela o ponto de intersecção entre aquele casal e o casal Jivago/Tonya.
Ou ainda quando o barulhento preso político Kostoyed (Klaus Kinski) observa calado na madrugada, enquanto todos dormem num trem miserável e superlotado, que um velho e uma velha soviética deixam escapar, sob o segredo da noite, uma necessidade básica do humano – receber e dar carinho. Expressão que é reprovável às vistas do Exercício Vermelho, conforme indica o filme.
Há ainda, simbolicamente, os girassóis, ora vivos ora morrendo tal qual as esperanças de Jivago; há os lobos que uivam como uma lembrança daquilo que aguarda o casal proibido sob o regime dos revolucionários; e outra metáforas que só reforçam a elegância como David Lean cuidou dessa adaptação literária.
Adaptação que, inclusive, evita apresentar textualmente ao espectador a escrita poética do protagonista. Em Doutor Jivago, o filme, é a presença do personagem com o seu entorno que forma a poesia em si. O espectador que se resolva para absorvê-la como puder.
Vale lembrar que toda a história nos chega em flashback, pela conversa num momento presente, em que o oficial Yevgraf (Alec Guinness), meio-irmão do já falecido Jivago, entrevista uma jovem camarada do partido que ele suspeita ser sua sobrinha perdida – fruto do amor de Jivago com Lara.
Mesmo nesse pequeno contexto, de Yevgraf procurando a sobrinha, fica em destaque a essência do romance de Pasternak, tão perseguido pelos soviéticos e tão bem resolvido por David Lean. Nesta essência está a brutalidade do contraste entre a ideologia de uma guerra contra a expressão sensível de qualquer indivíduo. Seja essa uma expressão amorosa ou artística. E nada melhor para expor esse contraste do que um poeta apaixonado numa guerra cega.
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