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Um olhar a cada dia

Livres lembranças de uma sessão de cinema e de um filme inesquecíveis

Por Luiz Joaquim | 25.01.2021 (segunda-feira)

No Recife, na noite de segunda-feira 25 de março de 1996, os ponteiros se aproximavam das 23h30 quando este que aqui escreve, ainda atônito, saia cambaleante pela porta do cinema Veneza (1970-1998). Lá dentro, tinha acabado de vivenciar três horas de deslumbre sobre Um olhar a cada dia (To viemma tou Odyssea, Gre./Ita./Fra., 1995), dirigido pelo grego Theo Angelopoulos (1935-2012) – leia aqui entrevista com o diretor.

Não era rara essa caminhada desnorteada após as exibições projetadas na Sessão de arte dos anos 1990 na capital pernambucana (*). As sessões aconteciam, originalmente, às sextas-feiras no cine São Luiz (às 21h); no sábado na sala Recife 3 (bairro de Boa Viagem) às 10h, e às segundas-feiras no Veneza, às 21h. Depois, houve variações no projeto, que excluíram o São Luiz, e, com o fechamento do Veneza e das salas Recife (em 1998), migrou para o multiplex do Shopping Recife.

Mas aquele final de sessão, com o filme de Angelopoulos que lhe deu o prêmio da crítica e o Grande Prêmio do Júri em Cannes no ano anterior, entrou na categoria dos inesquecíveis. Afinal, havia algo de sagrado na maneira como o grego decidira encerrar o filme, com o personagem de Harvey Keitel citando Homero:

Quando eu retornar, estarei com as roupas de outro homem, com o nome de outro homem. Minha chegada será inesperada. Se você olhar incrédula para mim e disser “você não é ele”, eu lhe mostrarei os sinais, e você acreditará em mim. Eu direi a você sobre o limoeiro no seu jardim, sobre o canto da janela que resta à luz do luar e sobre os sinais do corpo, sinais de amor. E quando nós subirmos trêmulos para nosso velho quarto, entre um abraço e outro, entre palavras de amor, eu contarei a você a viagem durante toda a noite. E, nas noites seguintes, entre um abraço e o próximo, entre palavras de amor, a história de toda a humanidade – a história que nunca tem fim.

Tais palavras fechando o ciclo das diversas pancadas de puro virtuosismo cinematográfico que Angelepolous construiu ao longo das cerca de três horas de duração em sua obra, só selavam com a elegância própria (e rara) da arte a intensidade dos sentimentos suscitados ali naquela noite, naquele lugar. O auditório de um cinema que hoje não existe mais.

Voltei para casa um ser humano melhor. Tinha certeza disso, pois, habitualmente, convicções se apresentam claras a nós quando elas nos atingem (e não o inverso).

Na busca do protagonista – um diretor de cinema (Keitel) de volta à Grécia após três décadas ausente –, ele procura encontrar três rolos de filme cinematográficos não revelados desde a primeira década do século 20. O conteúdo talvez guarde o primeiro olhar do cinema grego, construído pelas mãos dos irmãos Manákis, pioneiros da imagem em movimento naquele país.

Com esse pretexto, Angelopoulos refaz uma viagem externa e interna – como faz Ulisses na Odisseia – mas de mãos dadas com o que o cinema pode sugerir de inefável, de beleza que não se traduz, ao mesmo tempo em que lança mão de uma alfinetada sócio-política sobre os países na região dos Balcãs, ao sudeste da Europa.

O início e o fim – do século 20, pautado por guerras – estão aqui ladeados por imagens virgens de cinema. E, no filme de Angelopoulos, é a arte que alivia os humanos da brutalidade.  Como o respiro que ele cria pelas apresentações de teatro, de música e a alegria da dançar ao ar livre nos intervalos, no cessar-bombas, de uma Sarajevo massacrada por ataques.

Músicos tocam entre um bombardeio e outro – cena de “Um olhar a cada dia”

Nesse mundo inóspito, o cinema, a sala de cinema da cinemateca de Sarajevo é, literalmente, uma ruína. A memória é uma ruína. Mas o cinema, aquele que nasceu da pureza do olhar dos Manáki há quase um século pode vir a ser o bálsamo a ligar as duas pontas da história da humanidade. A do primeiro olhar e a do último olhar.

(*) O projeto da Sessão de arte nasceu, originalmente, em 1963 pelas mãos do cineclubista Darcy Costa e do empresário Luiz Severiano Ribeiro e, a partir de 1981, passou a ser programado, fomentado e difundido de Fortaleza por Pedro Martins Freire, que trabalhou por 33 anos como crítico de cinema do Diário do Nordeste. Nos anos 1990, o projeto chegou às salas do GSR no Recife e em 2015 migrou para o complexo do grupo mexicano Cinépolis, no Shopping Guararapes (em Jaboatão dos Guararapes, PE).

Saiba mais lendo aqui.

Uma das mais memoráveis imagens de “Um olhar a cada dia”

Curiosidade a: Logo que iniciou a sessão de Um olhar a cada dia, um rapaz falou ao amigo que estava sentado ao seu lado, estando ambos na fileira adiante da minha: “Mas será possível que esse cara [Harvey Keitel] tá aqui toda semana?”

De fato, havia uma proximidade na programação da Sessão de Arte entre os filmes Cortina de fumaça e Sem fôlego (ambos de Wayne Wang, de 1995) que davam a impressão que Keitel era mesmo o dono do pedaço.

Foi engraçado.

Curiosidade b: A mesma Sessão de arte, também apresentou, de Angelopoulos, ao Recife Paisagem na neblina (1988, tendo estreado no Brasil apenas em 1992) e, posteriormente,  A eternidade e um dia (1998).

 

 

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